O 'lugar' na escrita literária

Nessa longa caminhada para aperfeiçoar a escrita literária, um dos passos mais importantes é, certamente, entender o peso dos personagens. E isso implica entender que bons personagens terão conflitos bem desenvolvidos, que farão a história andar.

Mas parece existir um outro passo, que talvez seja menor mas ainda assim importante, que é entender a relevância do lugar onde a trama se desenrola.

O ambiente do personagem tá legal? Tá encaixado? O espaço entorno tá 'traduzindo' algo importante da história, ou é algo aleatório/descartável?

Certamente não deveria ser algo aleatório/descartável.

No post de hoje, considerações sobre o 'lugar' a que submetemos nossos personagens e conflitos. E para ilustrar, vou comentar rapidamente a ambientação em 'Solaris', clássico de ficção científica escrito por Stanislaw Lem e já resenhado aqui.

<'LUGAR' JÁ É HISTÓRIA>

O fato é que o lugar-espaço onde a história acontece já é a história. Quer dizer, não deve ser pensado como um elemento gratuito ou avulso.

Oras, se o personagem e conflito devem necessariamente estar em algum lugar, que essa necessidade <strong>se traduza em um dos elementos narrativos estratégicos mobilizados pelo autor.

A importância do 'lugar' talvez fique muito mais clara se começamos o entendimento pela estrutura narrativa da famosa 'Jornada do Herói'.

Nessa estrutura, existe o momento inicial - e fundamental - da passagem do 'Mundo Comum' para o 'Mundo Especial'. É o momento em que o personagem (no caso, herói) deixa para trás o conforto do seu dia a dia que é, em alguma medida, uma zona de conforto, e adentra em um novo 'lugar' - que pode ser abstrato, mas geralmente carrega evidentes marcadores concretos, como uma nova cidade.

Essa passagem e, depois, o 'Mundo Especial' precisam assumir marcadores de distinção, que são fundamentalmente marcadores de um 'lugar' diferente. E por quê? Porque aventuras e conflitos geralmente dependem (pelo menos nessa estrutura narrativa) de um 'lugar' diferente para tomar espaço e vir à tona. Não só: um 'lugar' diferente ajuda a reforçar o tamanho do desafio, o perigo a que o herói está submetido, sua insegurança, e por aí vai.

Agora pare e pense quantas histórias, de livros e filmes, dependem de um 'lugar' diferente para acontecer! E pense quantas histórias teriam bem menos impacto caso o 'lugar' não fosse trabalhado cuidadosamente.

Mas isso de incorporar o 'lugar' como elemento da história não revela todo o potencial da coisa. Podemos aprofundar esse potencial através da exploração da subjetividade.

<O VÍNCULO DO 'LUGAR' COM A SUBJETIVIDADE>

É por esse olhar que as coisas realmente parecem ficar legais.

Em algum momento você já se deparou com associações de 'lugar' com emoção do personagem. E 'lugar' em sentido amplo, como o ambiente/a ambientação.

Casos clássicos: a chuva pela janela traduzindo a melancolia de um momento, ou o personagem em crise existencial perambulando perdido no meio de uma cidade suja e inóspita.

Sacou?

O 'lugar' é que acaba traduzindo a carga dramática da cena.

A questão fundamental é:

No ato da criação literária, a realidade objetiva pode ser ancorada em elementos subjetivos.

Vai ser sempre mais rica a descrição do 'lugar' quando este invocar aspectos subjetivos.

E embarcando nesse campo da subjetividade, podemos desdobrar mais um aspecto: a simbologia

<A SIMBOLOGIA DO 'LUGAR'>

Para ilustrar como o ambiente pode se revestir positivamente de simbologia, vou recorrer a 'Solaris', de Stanislaw Lem, que li recentemente e expressa muito bem esse aspecto.

Em termos gerais, a história é sobre um pequeno grupo de pesquisadores que está num planeta distante chamado Solaris, onde fenômenos estranhos acontecem.

Tais fenômenos, no nível expresso e mais, digamos, racional da leitura, puxam bastante para o lado da memória, das emoções, citando inclusive o inconsciente.

E aí que o autor, Lem, faz a história se passar em um planeta que:

1. é todo ele coberto por um mar; e

2. é regido por dois sóis, um vermelho, um azul, que se alternam.

Não é preciso de nenhum dicionário de simbologia para pegar que o 'mar' aqui vem com noções embutidas de algo que é grande, poderoso, e, ao mesmo tempo, desconhecido e incontrolável - o que no sentido geral do livro, em que temos humanos lidando com os limites de suas mentes e propósitos existenciais, é plenamente encaixado.

Cito o artigo 'Solaris: conhecimento e autoconhecimento', de Rafael Raffaelli, quando retoma Jung para compreender o oceano na obra em questão:

Podemos pensar no oceano como uma metáfora do inconsciente ou, numa formulação mais precisa, como o si-mesmo, o centro da psique na teoria junguiana, “aquela indescritível totalidade (ou inteireza) do homem&nbsp;que não pode ser visualizada, mas que é indispensável como conceito intuitivo” (Jung, 1985, p. 148)." (Solaris: conhecimento e autoconhecimento, p. 216)

Nesse contexto, prossegue o autor, o

"oceano seria, assim, a representação do arquétipo central, de tudo de misterioso e enigmático que encontramos nas entranhas de nosso próprio ser e no mundo, sobre o qual nada de positivo pode ser dito." (Solaris: conhecimento e autoconhecimento, p. 218)

Algo semelhante acontece com a questão dos sóis.

Eles fazem tudo se tingir ora de um tom pálido azulado, ora de um tom carmesim vivo, o que remete a uma porção de questões, do que a mais instigante, talvez, seja a de ilustrar como a realidade pode ser duplamente vista - e fica aquele alô para a dupla consciência/inconsciência que, novamente, é absurdamente coerente com a história.

Vejamos só esse trecho:

"Meus olhos doeram com a brancura do papel. Aquele novo dia era diferente do anterior. No clarão quente do sol vermelho, a névoa caía sobre um oceano negro com reflexos vermelho-sangue e as ondas, nuvens e céu eram quase constantemente encobertos por uma cerração carmesim. Agora, o sol azul trespassava a cortina de flores estampadas com uma luz cristalina. Minhas mãos bronzeadas pareciam cinzentas. O quarto transformara-se: todos os objetos que refletiam o vermelho, haviam perdido seu brilho, tornando-se acinzentado, ao passo que aqueles que eram brancos, verdes e amarelos haviam adquirido uma luminosidade viva e pareciam emitir luz própria." (Solaris, p. 33-4)

A cena, além de imersiva, é construída com tanta dedicação que seria ingenuidade acreditar que Lem escreveu isso aí apenas para cumprir uma formalidade - do tipo 'ah, isso aconteceu em algum lugar, então vou dar uma descrição qualquer aí'.

Na verdade, sem muito risco errar, podemos dizer que um bom escritor não usa jamais de mera formalidade para construir seus 'lugares'.

E talvez seja essa a grande lição que um escritor café com leite pode pegar:

O 'lugar' da história, sua ambientação, é um elemento poderosíssimo para reforçar a elementos subjetivos, seja numa cena, seja na própria história como um todo.