ENTRE AMORES E TAÇAS
O quarto bagunçado denunciava a cena de amor vivida minutos antes. A cama desforrada com a ponta do lençol tocando o chão no qual jazia um preservativo usado, tendo como companhia cascas de amendoim. Ao lado, na escrivaninha, o cheiro de álcool, vindo das taças, cortava o ar como uma flecha rasante. No parapeito da janela, ela fumava um cigarro enquanto olhava os prédios vizinhos.
Ele saiu mais cedo. Precisava voltar a tempo do jantar. Na sua mente, fervilhavam pensamentos conflitantes. Sabia o quão prazeroso era participar daqueles encontros. Há anos mantinha uma vida dupla e isso, por vezes, o atormentava. As pressões da vida cotidiana validavam seu comportamento, ao menos tentava acreditar nisso. Finalmente chegou em casa. Estacionou o carro, desceu e abriu a porta. Estava salvo, por enquanto.
Ainda em um estado absorto, foi despertada pelo ronco de sua barriga. Precisava comer. Abriu a geladeira e notou seu vazio. Novamente passou o olho na bagunça do quarto e, pela primeira vez, sentiu-se mal. Não lhe parecia ser razoável continuar daquela forma. O remorso inexistia, apenas via-se desvalorizada, como as taças com resto de vinho sobre a escrivaninha. Sem dúvidas o amava. O amou desde o primeiro momento. Chegara, então, a hora de terminar. Antes, vestiu-se e foi jantar.
Ele, após mais uma refeição trivial, sentou-se na poltrona preferida para ler. Não pôde. O sinal de uma mensagem no seu celular o impediu. Pela insistência, resolveu responder. Era ela, pedindo um encontro naquela hora. Impossível, ele ponderou. Aa passo da firmeza expelida, cedeu. Inventou qualquer desculpa para a esposa e voltou ao apartamento. Lá, ela o esperava, com um coque na cabeça, vestido rodado e as taças lavadas sobre a pia.
O que deseja? Disse ele. Colocar um ponto final em tudo, a resposta. Por mais argumentos que ele colocasse, era inútil. Dentro dela, a morada da razão tinha se fixado. Com um peso de uma jamanta, esmagara seu coração e o desfecho era inevitável. E tudo foi sacramentado, numa noite fria e insossa de inverno. Na janela, as luzes dos vizinhos refletiam o cenário confuso e mentiroso vivido por eles, e por ela também.
Ao longo dos dias, por várias vezes, voltou ao parapeito para observar a mesma paisagem. Dessa vez, entretanto, a obliquidade costumeira desapareceu. Restou somente o desejo de um possível recomeço, sem firulas românticas ou receios dúbios. Suas taças foram embaladas e guardadas no armário, onde por lá ficarão até os ventos da primavera novamente soprarem em seu coração.