UM ÚNICO SONHO
Não havia em sua vida a graciosidade dos dons inatos, exceção feita à boa saúde. Nascera, crescera e vivera sem se destacar em nada. Anônimo como uma folha de grama. Dotara a si mesmo de persistência e assumira a vida indiferenciada que Deus lhe dera.
Não alimentara sonhos em momento algum de sua vida. A roupa lhe vinha de segunda mão dos irmãos maiores, a comida era pouca e monótona, os caminhos eram longos e descoloridos, o cansaço sempre grande. Pressentira que qualquer sonho sugaria as energias que necessitava para empurrar eternamente a rocha de Sísifo morro acima.
A oportunidade, entretanto, surgira e o encontrara pronto. No curso de capacitação de carpinteiros, um mestre de obras reparara na sua obstinada concentração em medidas exatas e em bons cortes. Contratado, fora para a cidade grande. Aprendera de pouco em pouco, sempre desconfiado de quem se aproximasse amistosamente. De habitual calado, olhando para os colegas a dois passos de distância, mesmo quando se reuniam ruidosamente em torno de alguma novidade inofensiva. Nada dizia sem estar absolutamente seguro, e nada ouvia que não se referisse a fios de prumo, serrotes, ferros e lixas.
Essa é a vantagem de nunca ter sonhado: não se cai no vácuo deixado pela expectativa evaporada. O mau tempo, a distância, as pequenas indisposições não o desviavam de sua rotina. A tristeza, quando surgia, era um saco de areia a carregar pacientemente até que o tecido furasse.
Teria uns dezessete anos quando iniciou o segundo grau. Com a lentidão de um boi, ruminara gramáticas e equações, diplomara-se, pesara as chances para um projeto pessoal.
Aos vinte e oito anos, com a falta de imaginação que o caracterizara, era dono de sua própria empreiteira. Os empregados sabiam que o salário seria pontual e os tratos cumpridos ao pé da letra. Mas também sabiam que a criatividade e o excesso de vitalidade seriam mal vistos. Obedientes à chefia, tornavam-se também pontuais, cuidadosos e autocontidos.
Prosperara lenta e seguramente. O seu natural agreste aprofundou-se com o passar dos anos. Sabia que nunca mudaria.
Já a conhecia há muito: era o único sonho que se permitira acalentar alguma vez. A morte do marido não chegara a acender nenhuma brasa de expectativa naquele peito sólido. Contentara-se em amar em segredo e imaginar furtivamente o vulto amado passando pela rua.
Mas a primavera chega também para o deserto. E no tempo certo, eram marido e mulher. Viveram juntos por uma década. Sabia-se sem graça: calado e circunspecto, sempre a dois passos de distância, deixara-a viver sua vida de sorrisos brilhantes e coração aberto para os múltiplos afetos. Ela era uma alegre touceira de sempre-vivas e rosinhas, fervilhando com as visitas de todos os seres brilhantes e alados do jardim. Ele, o despercebido vaso de concreto. E eram felizes, sendo o que tinham que ser.
Dez anos, uma década, uma vida ou um instante? Assim que a doença tornou-se terminal, ele mesmo aplainou e encaixou as pranchas de mogno onde o corpo dela seria depositado: resultou obra sem enfeites nem adornos, segura e confiável como as mãos que a fizeram. No entanto, a madeira de lei seria um receptáculo mais efêmero do que o coração que conservaria a imagem adorada por todos os anos seguintes.
Um único sonho em toda uma vida. Se o perdesse, como segurar a própria estrutura? A rotina dos anos marcara fundo. Caminhava automaticamente pelos sulcos. Não perdeu um dia de serviço, não dedicou um momento de suas horas de trabalho a recordações. No final do expediente, sentia a antecipação do momento em que seria recebido em casa por ela. Sentia, mas sabia que ela não estaria mais lá. Era herança dela aquela meia hora de leveza enquanto caminhava até o portão da casa. Quando entrava, não havia mais janta pronta nem cheiro de roupa lavada no quartinho do ferro elétrico. Mas alguma coisa havia. O que seria mesmo?
Demorou um certo tempo a definir. É a essência do meu sonho, pensou. Entranhado na madeira e no cimento, na argila dos pratos e no metal das panelas, o sonho deixara seu perfume.
Tangará da Serra, 20/11/2003.