UM ARBUSTO CHANTAGISTA

Um gosto dela: perfumes. De preferência de flores. Não vêm em frascos que se abre a qualquer hora. São os mais trabalhosos. Exigem um tempo certo e cuidados constantes para serem apreciados. Caso se queira que a brisa entre perfumada casa adentro, depende-se dos caprichos da brisa. As flores são soberanas em relação ao seu aroma.

A branca flor do jasmim, acreditava, daria menos trabalho. Planta de flores abundantes e perfume forte. Sua simples presença bastaria para receber um lembrete olfativo diversas vezes por dia. Mas quem é que se importa ainda com o jasmineiro, planta caipirona e antiquada, nesse mundo de jardins decorativos?

Um caipirão antiquadão, claro. O velho japonês do sítio providenciou a muda: no mesmo dia estava plantada. A expectativa de que pegasse teve final feliz. Em poucos dias, o raminho dava sinais de ter se enraizado. Restava esperar o tempo certo. Passou o ano todo na expectativa. E ouvindo do povo: essa flor não tem perfume.

Mas como não tem? Tinha que ter. O velho Sassaki tinha que saber o que fazia. Mas esse não tem, teimavam as bocas. Pois se não tiver, corto esse arbusto e procuro outra muda, respondia. E o jasmineiro crescia, um tiquinho por semana, no seu ritmo, e sempre ouvindo a conversa sobre flores perfumadas.

Quando começaram as chuvas de final de ano, a plantinha vitaminou-se e cresceu acelerada. Em dois meses, o ramo mais alto, com suas lustrosas folhas verde-esmeralda, ultrapassavam a cabeça da dona. Ela espiava todo dia o aparecimento das borbulhas nos ramos, que se tornaram hastes com botões fechados. Antecipava o prazer que seria chegar em casa à tarde e sentir o cheiro das flores, ou, em meio ao sono, no quarto com a janela sempre aberta, ser acariciada pelos vestígios do aroma. E o pessoal da casa dizendo: você vai ter que cortar, esse não tem perfume.

Era uma linda planta, daria pena cortar. Mas ela queria porque queria o perfume. Era por isso que tinha se empenhado e era isso que teria. Compraria vasos, colocaria raminhos floridos em cada cômodo da casa, sentaria na varanda aos domingos para ler um livro em meio ao perfume de jasmim.

Um dia, dois, três. Os botões perdiam o tom de verde, engordavam, mostravam as anáguas brancas dobradinhas dentro das cápsulas. Estas perderam a forma ogival perfeita e abriram uma pontinha: mais dois dias, a primeira desabrocharia. Todos os dias, ela estava por perto, acompanhando o processo com ansiedade. O primeiro ato de suas manhãs era fiscalizar a planta. Arbusto lindo e saudável, muito singelo em seu desejo de crescer, de espalhar ramos com muitas folhas verdinhas, mais lindo ainda nessa singeleza. Daria pena cortar.

E... abriu. A primeira flor abriu. Branca, imaculada e perfumada. Um sorriso e uma visita apressada a todos os cômodos da casa para mostrar os parentes: eu não dizia? Tem perfume sim. Esse eu não corto não.

Foi uma manhã feliz, onde o desejo acalentado encontrava realização. Amanhã abre outro cacho de flor e então começa, pensava. Então começa a perfumar a casa toda.

E chegou a manhã. Mais duas flores abertas. Ambas inodoras, perfeitamente inodoras em sua alvice imaculada. Não podia acreditar. Comparava essas duas com a primeira e não havia dúvidas: uma perfumada, duas inodoras. Esperou mais um dia.

Da quarta em diante, nenhum engano restava possível. Era arbusto da variedade inodora, abundante de flor e desprovido de perfume.

Uma chantagem. Esse malandro me chantageou. Ouviu minhas conversas, tomou providências.

Mas ela não o cortaria. Palavra dada, palavra empenhada. E até hoje o arbusto comemora, com a abundância de folhas e flores, no seu cantinho de quintal, o direito de vive

Tangará da Serra, 30/11/03.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 10/08/2020
Reeditado em 16/04/2021
Código do texto: T7031308
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