RUIM FEITO A XICA DA SILVA

Era uma gata cinzenta, enorme e de maus bofes. Aparecera no quintal vinda – de onde? – e desde o primeiro momento quisera, tirana, tornar-se dona do território. Havia outra gatinha, criada desde filhote com dengos e mimos, a titular. Voltava para ela os maus instintos, até que a dona viesse acudir. Ao retomar a pequena Branca no colo, sempre dizia: essa casa não é sua, é dela. Quem tem que sair daqui é você.

Os dias transcorriam em meio ao labor doméstico, pontuados pelas brigas no quintal. Brigas? Melhor dizendo, as maldades da gata grande sobre a gatinha pequena. Ruim assim nunca vi, pensava. E Xica da Silva ficou sendo seu nome.

Nunca quisera aceitar o animal insistente e agressivo que se metera em sua casa. Não a acariciava, mesmo quando, acalmada, vinha esfregar-se nas suas canelas, nessa imemorial tentativa de sedução dos felinos. Não lhe atirava pedacinhos de bife nem deixava que se aproximasse do pires de leite. Procurava separar Branca dela na hora de servir a refeição da gata, sabendo que iria bater-lhe e roubar a comida.

- Vai logo embora, ó malvadeza, que essa casa é dela, não sua! E a gata não ia.

Nada mais irritante do que lidar com a insistência de um gato disposto a fazer o que bem entende. Todos parecem ter o sangue de reis da selva correndo nas veias. Não se domesticam senão por vontade. Escolhem seus donos e sempre deixam claro a eles que não precisam de tutela para viver. Bicho independente, majestoso e teimoso, tão amigo e tão meigo nos seus momentos de expansão afetiva, tão distantes e telúricos quando se dedicam à própria personalidade.

E os dias passavam, e Branca apanhava, e Xica da Silva ouvia três vezes por dia: saia daqui, a casa é dela e não sua.

Veio o cio. Primeira vez para Branca, não se sabe das quantas vezes para Xica. As duas gatas emprenharam e apojaram quase ao mesmo tempo. Passou aqueles 90 dias ainda mais vigilante quanto às maldades da gata maior. A doce Branca, sempre mansa, mal aprendera a se defender.

E viria o parto. De antemão reservara um lugar escuro e escondido para Branca, debaixo do guarda-roupa antigo. Acostumara a felina a tomar leite naquele local, levara-a para lá diversas vezes. A gatinha terminou por saber que o tapete limpo e velho e a barragem de caixas de sapato para tapar a luz eram seus. Xica da Silva entrara duas vezes para assuntar e, sendo mais velha e mais esperta, entendera sem maiores explicações.

E veio o parto. Ao sentir os primeiros sinais, levara Branca para seu particular e confortável refúgio, deixara-a entregue à sabedoria da Mãe Natureza, parteira por excelência de todas as criaturinhas não-falantes. Branca ronronou, ronronou e deu ao mundo três filhotinhos malhados. Orgulhosa, a mamãe de primeira viagem lambia as crias por gosto; Xica da Silva vinha com sua barriga crescida, espiava e era enxotada com o refrão costumeiro.

Na semana seguinte, era a vez da gata cinzenta. Por esperteza, por imitação ou por segurança, sabendo que a moça não faria mal a um felino, tentou esgueirar-se para dentro do quarto dela. Foi surpreendida em flagrante e enxotada, digo, carregada para fora com delicadeza. Que procurasse outro canto para isso. A casa era de Branca, não dela.

Mas voltava. Por três vezes voltou e por três vezes ouviu. Mas, distraída por visitas ao portão, a moça afrouxou a vigilância. Prevendo que Xica aproveitaria a chance, ladina que só ela, foi ao quarto conferir.

E viu: deitada na caixa de roupas sujas, perto da porta, tendo entre as patas um dos filhotes de Branca, que fora buscar embaixo do guarda-roupa; deitada sobre as roupas por lavar, mimava e lambia o gato, como se filhote dela fosse, dedicada e atenciosa, toda mãe, toda suplicante. Ergueu dois olhos de pura meiguice para a moça e voltou a aplicar-se nos carinhos ao filhote alheio. Com uma cara de ter sido a melhor amiga da estimada colega por toda a vida.

Risada geral na casa. Será que ela perdeu a vontade de bater na Branca? Está bom, decidiu. Está bom, então fique. E, devolvido o filhote à mãe original, Xica da Silva teve seus cinco gatinhos no escuro e no protegido, no canto entre a parede e a cômoda, com almofadas para tapar a luz. E lá ficaram as duas gatas, cada uma com sua ninhada, em boa paz.

Em boa paz até o dia seguinte, quando o barulho no quintal avisou: outra briga. Tudo voltara a ser como antes. E Xica da Silva conquistara seu espaço na casa.

Tangará da Serra, 04/01/2004.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 10/08/2020
Reeditado em 16/04/2021
Código do texto: T7031306
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