O MENINO QUE BRINCOU UMA VEZ

Passara a infância doente. A infecção no umbigo, agravada com remédios caseiros e a falta de leite materno, resultara num bebê magrinho, com a face enrugada, que engatinhara pela primeira vez com um ano e um mês. Apenas aos dois anos se firmou nas pernas para dar os primeiros passinhos. Era apático e tinha os olhos demasiado sérios de uma pessoa que não espera muita alegria da vida.

No ano seguinte, contraíra tifo. Dessa vez a família tinha como tratar a doença em hospital. Lá ficara por um mês, coberto de bubões, febril e desidratado. A recuperação se fizera a custo. Recusava-se a comer e vomitava muito. Os remédios lhe estragaram a digestão para o resto da vida. Comer nunca lhe fora um prazer.

Chegando à idade escolar, reunia forças desde cedo para caminhar os trezentos metros até a escola, onde sentava quieto e concentrado na fileira do meio, descobrindo que a mente podia ter a vitalidade que faltava ao corpo.

No recreio, quando comia o lanche, sentia náuseas. Passou a preferir apenas leite com toddy. Não brincava, não corria. Ganhava notas por bom comportamento. Agradecia-os com um quê de ironia que fazia brilhar os olhos encovados. E tinha olheiras.

Não suportava o sol. Uma simples ida à igreja deixava-o com enxaqueca. Tinha que deitar no escuro para acalmar as pontadas nas têmporas. Os olhos ardiam. Nas férias, costumava sentar-se à janela com um livro, ou simplesmente com a própria companhia. Olhava a molecada na rua defronte, entretidos com bolas e bonecas, sem entender como poder-se-ia gostar de correr e suar debaixo da soalheira.

Tentara correr uma vez, para sentir o gosto. A batida dos pés no cimento fizera doer as pernas. O fôlego logo acabou, deixando pontadas no espaço embaixo das costelas da esquerda.

Mas os livros tinham tudo. Na pele das personagens, fora Tarzan montado no lombo áspero de Tantor; fora o agente secreto ardiloso; o Lanterna Verde com seu poderosos anel; Ken Parker galgando as árvores da floresta com a elegância de um macaco; gritara “Shazam!” mentalmente, caprichando no eco, sentira o corpo arrepiado. Sonhara: e para a mente, o sonho é real.

Era capaz de ler por dias a fio, só parando quando as forças físicas ou o chamado à escola o obrigassem a parar. Já decidira o que iria ser quando crescesse: advogado. A vida entre livros, levando as forças intelectuais ao limite para deslindar casos e capturar detalhes significativos, lhe parecia a mais atraente de todas.

E o tempo passou. A face infantil adelgaçou-se para a esticada do crescimento. O apetite crescia. A pele sem viço acusara uma espinha. Bem informado por tantas leituras, procurara no corpo os primeiros pelos. Uns três anos disso, pensara, e pronto, já estou fazendo o vestibular. Deixar a infância para trás não lhe custaria nada.

E tivera que ir à tia levar recado. Atrasara-se, perdera o ônibus. Resolveu voltar a pé. Na saída do bairro, a molecada disputava uma pelada e um moleque mais ou menos de sua altura gritara amistosamente para ele: - Ei, você aí! Vem cá que tá faltando um no meu time.

Quis recusar. Mas era um dia de invernico, sol escondido, vento fresco. Como num sonho, viu-se em meio à molecada: o “Shazam!” vibrava no corpo, os pés devoravam o campinho empoeirado, a bola ia e vinha. Ele sabia quando ela viria, e estava lá para aparar; sabia quando ela iria, e assumia posições estratégicas. Simplesmente sabia o que fazer.

Disputou uma dividida com um gorducho de maus bofes que lhe enterrara o cotovelo debaixo do queixo; revidou com uma rasteira que estatelou os cinqüenta quilos de bruto na poeira, ganhou a bola, avançou e fez gol. A garganta latejava e ele nem notava. Então é isso, pensou, é isso que eles sentem quando estão brincando. Suado e sujo, imerso na previsão de cada movimento e do papel que lhe competia nas jogadas, continuou em transe até o fim da partida. Ganharam: marcara um gol.

Separou-se dos companheiros eventuais com naturalidade, como se tivesse feito isso todos os dias de sua vida. Chegou em casa, lavou-se e jantou resplandecendo.

No dia seguinte, encontrara no rosto os primeiros dois fios de barba.

Muitos anos mais tarde, um advogado bem firmado na carreira e de face macilenta olhava para os anos idos e parava naquele dia, naquele singular evento onde a persona do menino que devia ter brincado assumira o controle do menino que nunca brincara. Nunca mais gozara daquela fluida antevisão: tudo fora conseguido pelo esforço e por tentativa, estudando e insistindo até ficar bom numa parte, seguindo para a fase seguinte com a determinação de um estrategista.

E vencera. Era um homem que sabia falar sério. E tinha brincado uma vez

Tangará da Serra, 14/11/2003.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 10/08/2020
Reeditado em 16/04/2021
Código do texto: T7031302
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