ONTEM NO TREM: Mais um Rodrigo.

Ontem no trem.

Depois de cinco meses andei de trem! Confesso que estava receosa devido a pandemia que nos assola, mas tudo como antes no Reino de Abrantes... Apesar de ter escolhido um horário menos cheio só consegui sentar depois da quarta estação. Camelô anunciando suas mercadorias, sem máscaras. Todos os camelôs, sem máscaras!

Os passageiros em sua maioria estavam com máscaras... Tudo bem que no queixo, no pescoço, com o nariz pro lado de fora... Enfim, mas estavam fazendo sua parte ou metade da parte. Sem nenhuma fiscalização e num ambiente fechado. Prosseguimos a viagem.

Em certo momento, no regresso, o camelô pulou de alegria dizendo: “Consegui! Já defendi hoje o da pensão... Tá tranquilo... Bora pra casa!”

Hoje conheci Rodrigo... Negro amarelado, franzino, boné, bermuda, camiseta pelo avesso e andar malandreado... Aproximou-se e pediu dinheiro para comprar comida... Olhei-o nos olhos e ofereci biscoito de maisena que tinha na bolsa. Ele estendeu a mão. Compartilhei com ele meus biscoitos. Puxei assunto. Perguntei seu nome e se morava por ali. Ele respondeu que atualmente morava na rua, no alto da estação de São Cristóvão.

Eu indaguei: Na rua? Faz muito tempo?

Ele balançou a cabeça afirmando e completou que morava desde os 10 anos.

Novamente perguntei: Como assim? Você não tem família?

Ele coçou a cabeça e depois respondeu que tinha perdido o pai assassinado em um assalto e que ele era um "negão” e não levava desaforo para casa e explicou que neste momento tudo começou a piorar. Disse que a mãe morreu logo depois de enfisema. Ela fumava, bebia muito e tomava muito café e que tinha morrido deixando ele com apenas10 anos.

Ele suspirou e olhou para o vazio: “Morei em tantos lugares... Na porta da igreja da Nossa Senhora do Desterro em Campo Grande, depois na estação de Santa Cruz, Central e outros lugares... Agora estou morando aqui e apontou para estação em frente ... Estou na rua novamente...”

Eu mudei de posição no banco e quis saber mais de sua história.

Ele continuou: “Então... Eu colei com uma menina, ela ficou grávida e fomos morar na casa dela em Cosmos”. Com um largo sorriso continuou: “Tivemos um guri, que coloquei o nome de Daniel Ítalo com acento e não pigulinho... Mas ele nasceu doentinho, problema respiratório, cabecinha amassadinha, pezinho um pouco torto. Ele ficou sete meses internado," nos revezava" no hospital. Ele não respirava sozinho... Depois morreu... No dia do enterro minha mulher falou para que eu fosse embora, pois a única coisa que nos ligava era o menino e agora já não existia mais...Voltei pra rua! Quando “os irmão " passam a gente come. Tem roupa limpa e até cobertor mas ultimamente está difícil..."

“Tá vendo isto aqui, apontando para o ombro direito, fui atropelado quando era bem novinho e fui fazer uma visita na igreja dos irmãos lá em Quintino”.

O ombro e o braço direito tinham Quebrados e não voltou mais pro lugar

Estava explicado agora porque do andar malandreado. Os membros cicatrizaram, mas ficaram para frente...

Ele ainda disse que tentou se aposentar por causa disso pelo INSS, mas não tinha conseguido.

Perguntei se ele tinha outros parentes? Ele disse que sim, um parente na Itália e um tio que segundo ele, era da Aeronáutica, mas que não se encontravam, pois ele não tinha endereço certo... Perguntei a idade e ele respondeu 34 anos.

Eu o olhei perplexo, pois parecia ter no máximo 20 anos... Ele virou de costa, tirou de dentro da bermuda sua identidade e me mostrou... E acrescentou: "a gente de rua se cuida... Não bebo e nem fumo... Tenho a pele áspera, porque às vezes dormimos no chão puro...”.

Ouvi e não ousei questionar... Ele pediu licença e se retirou... Disse a ele para ir com Deus.

E Rodrigo seguiu seu caminho... Vi aquela figura tão pequena, frágil, pálida e trôpega se afastando...

Pensei que este rapaz estava há 24 anos na rua! Um sobrevivente! Quantas coisas vividas, aprendidas, quantas cicatrizes...

Era um menino e ainda agora parecia um menino apesar da magreza, da pele amarelada e da idade... Algo nele, além da estatura, parecia de um menino... Talvez ainda tivesse 10 anos, idade que foi abandoando e obrigado a encarar o mundo e seus dissabores... Divaguei e consegui visualizar aquele menino, negro, pequenino e sozinho e na rua a mercê de todos os perigos e julgamentos...

Meu Deus! Meu filho fará 10 anos semana que vem e é tão frágil e tão dependente... E este menino seria diferente? O filho do outro não seria igual ao seu ou o meu?

Rodrigo foi só um menino que era da mãe e do pai, como o meu, e aos 10 anos virou filho da rua... Menino de rua e agora era um homem da rua.

Parece que Rodrigo não espera mais nada da vida... Apenas "os irmão " para lhe dar o pão.

Pensando nisto hoje... No abismo social, nas mazelas, nas crianças não queridas, abandonadas... Criadas pela rua e devolvendo para sociedade o que a ela lhe deu.

Então... Hoje foi a história de mais um Rodrigo como tantos nas ruas deste nosso Brasil.

De coração, me fez muito bem repartir meu biscoito de maisena com ele e ouvir a sua triste e infelizmente tão comum história.

Às vezes, sinto-me impotente e me frustro por não poder ou não saber ainda como ajudar mais... No entanto, por outro lado, estou me permitindo olhar nos olhos destas pessoas e ouvir suas histórias. Faço isso, pois realmente me sinto bem e útil dando e recebendo atenção...

Eles não são invisíveis, por trás dos corpos maltratados existem histórias de vidas e que se a sociedade não banalizasse ou discriminasse, quem sabe conseguiríamos unir forças para reconhecer o problema e tentarmos buscar estratégias e não deixar que uma criança, um menino, virasse um Rodrigo.

Se conseguíssemos olhar além do preconceito, do medo... Imagine um homem que há 24 anos se integra e se camufla na parte repudiada da paisagem carioca. Um homem que em sua vida toda ou foi invisível ou indesejável... O que pensa esta pessoa? No que acredita? Quais foram e são seus sonhos? O que espera da vida? O que recebeu de ensinamento? Quais são os seus valores? Qual sua relação com Deus e o universo?

Lembrando que Rodrigo já foi um bebê como o teu e o meu filho... Ele é fruto da vida que escolheram pra ele... Das circunstâncias... Do meio em que vive... Das mazelas sociais...

Se conseguíssemos olhar além do preconceito, do medo... Mas isto deveria ser um exercício diário... Aprender a Olhar... a perceber o outro... Incomodar-nos... Afligir-nos com a situação... E então quem sabe cairia por terra essa maldita invisibilidade... Solução muito conveniente, pois o que não vejo não me incomoda e, portanto não me responsabilizo. No entanto esta postura nos está matando como seres humanos, nos tornando reféns de nós mesmos, de nossas atitudes... Afinal, somos todos irmãos ou não?!

Embarquei no trem rumo ao lar depois de cinco meses de abstinência e muito pensativa de máscara, armada com álcool gel, situação nova e nunca vivida por minha geração, mas ainda deparando-me com velhos e tristes problemas que abrange nosso país.

Li algo que dizia que este ano a nossa boca foi tampada e o nosso sorriso escondido, foi proibido o tato o contato e o abraço. Restaram apenas os olhos e tudo passou a ser dito no olhar... Se sairmos deste ano sem sabermos pelo menos olhar nos olhos uns dos outros... Este ano terá sido realmente perdido.

Constato com tristeza que a sociedade ainda está entorpecida e como disse Jean Paul Sartre: "O pior mal é aquele a qual nos acostumamos".

Beijo no coração e que possamos aprender também a olhar o mundo do outro... Valorizar a vida... Qualquer forma de vida!

Glória Alice
Enviado por Glória Alice em 09/08/2020
Reeditado em 20/08/2020
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