O Cão e o Mendigo II
Passados dois anos, empresto para um amigo ler o texto sobre o Cão e o Mendigo – Peço Ração para o Cão. Ao final da leitura, ele me olha com seu jeito peculiar, com um sorriso debochado, e pergunta: Mas e aí, Fátima? Você levou a ração para cão? Como foi o encontro? Fico alguns segundos sem resposta – eu havia levado a ração para o cão! Havia me esquecido por completo do fato - eu havia levado, mas não o encontrei, e na correria do dia, voltei para a casa com a ração e dei para meus próprios cães.
A pergunta do meu amigo me pegou desprevenida! Mudei o trajeto e esqueci o cão! Isso é um alerta – um alerta para o desapego de pequenas coisas, de um milhão de pequenas coisas que compõe o nosso viver, e esquecemos, talvez por outro milhão de pequenas coisas menos importantes que nossas emoções, todavia esquecemos o primeiro milhão em detrimento ao segundo.
Precisei participar de um concurso para por no papel uma emoção, que era o olhar sobre o Mendigo e seu Cão. Precisei não ser a vencedora do concurso para mostrar a um amigo um texto que tanto me faz bem! Poderia ter escrito antes, e ter mostrado antes. E ter voltado antes àquela esquina para levar a ração para o cão. Mas não o fiz. Faço isso hoje. Voltei à mesma esquina.
Subo novamente a mesma escada – fixa, pois a rolante continua do outro lado. Ao sair para a luz da gigante Paulista, encontro um dia enfarruscado, nevoento, lacrimoso. Caminho. Congestionamento às vésperas de um final de semana com feriado. Tenho pensamentos malvados – dizem que falta dinheiro, mas continuam comprando! Recapitulo meus pensamentos – nada tenho a ver com os gastos popular. Tenho uma missão. Encontrar o cão e seu mendigo, o que politicamente está incorreto. Pelas novas vertentes devo tratar como pessoa em situação de vulnerabilidade. Mas faço aqui o uso da liberdade poética, afinal não teria tanto sentido se minha crônica fosse “O cão e a pessoa em situação de vulnerabilidade”! Então, mantenho O Cão e o Mendigo! Que a minha ignomínia seja perdoada.
Chego ao quarteirão onde, no passado, existia o barraco de papelão, e nada mais existe! Paro, olho no entorno. Nada! Cadê o barraco?! Falha-me o diafragma – não respiro. Depois de ter certeza que o barraco não está na esquina, embaixo da marquise da loja, vou até a outra esquina. Volteio o quarteirão. Definitivamente não estão mais lá – nem o barraco, nem o mendigo, nem o cão. Nem o pedido de ração.
Continuo meu caminho, em passos lentos, pensando no que perdemos por falta de tempo, por conta da tal procrastinação. A ração para o cão é uma coisa banal que ficou para trás, mas e outras coisas que também ficaram para trás? E aquela vontade de estudar História. E a pós em Literatura Portuguesa? E o livro com páginas em branco? E mais atrás ainda, o curso de jornalismo nunca começado? Estas são outras histórias. Agora é hora de finalizar o Cão e o Mendigo, afinal, chegam o feriado, o dia a dia e, como sempre, haverá muitos Mendigos e muitos Cães nas ruas em busca de uma refeição. Não há necessidade de uma placa que chame a atenção, pedindo. Basta pensar que não pesa, ao sair de casa, levar algo que possa matar a fome de quem precisa, apesar da lei que nos coíbe dar comida para o humano que precisa de comida. Que seja para o cão!