VIOLA, O CAMPEÃO
Bichinho insignificante: largado no lixo junto com o resto da ninhada, pedaço de umbigo ainda preso na barriga, recolhido por um freqüentador de bar que ouvira os miados insistentes. Dentro do bolso da camisa, mal fazia o volume de uma carteira de cigarros. E miava sem parar. A dona do bar ouviu, viu, assuntou e decidiu: sei quem cuida dele.
Entregou a vidinha esgoelante para a sobrinha. Susto inicial: aquela coisa preta e mirrada mal parecia um gato. Na palma da mão, se enrodilhou e dormiu por exatos cinco segundos: a única vez que seria visto quieto nos dias que se seguiriam. Logo acordou, e miou.
Chamava a mãe. Era um gato totalmente gato, queria as lambidas e o calor da mamãe, como um felino autêntico. E miava e chamava. Onde a gata? Ninguém sabia: o resto da ninhada já tinha desistido de viver quando foram achados. Se encolheram e dormiram para sempre, ainda cegos. Somente ele persistia em chamar, lutando em meio a cadáveres com sua única arma. Miar.
E chamou por mais três dias e duas noites. A gata do vizinho, recém- parida, não adotou a cria alheia. A mamadeirinha era grande demais para aquela boca onde uma ponta de lápis representava um terço de espaço. Acomodado de noite no sutiã, na esperança de que o calor do corpo e as batidas do coração o acalmassem, não se acalmava: andava e miava, as unhas ainda fora das bainhas se prendiam na pele, nos tecidos, no cabelo. A boquinha não se calava. Ninguém dormia.
Todas as sete vidas pareciam enfeixar-se no ato de miar. E sustentaria a altura e a intensidade dos chamados até morrer sem forças, se a sobrinha não tivesse tido a idéia de esvaziar um frasquinho de Novalgina e encher de leite.
Enrolado num lenço para não agitar as patas, tentou forçar o bico do frasco na boca: a pontinha já era uma violência, plástico duro, inflexível, muito grande. Mas tentou e conseguiu: o gatinho engasgou nas primeiras gotas, tossiu, e aprendeu a ficar passivo enquanto ela apertava o frasco, gota a gota.
Alívio geral na casa, na vizinhança, no mundo todo: os chamados cessaram. O animalzinho bebia e se aquietava. E ela levantava de madrugada para esquentar leite.
Mas vocês sabem porque nunca se encontra fezes nos criadouros de gatinhos? Porque não há fezes: o intestino imaturo expele apenas uma pasta cremosa, de leite parcialmente digerido, que a gata ingere sem problemas para a saúde. E o reflexo de evacuar acontece apenas na presença do estímulo materno: se a gata não lamber a parte posterior das pernas, o filhote não evacua. Apenas aos 30 dias o intestino tem maturidade suficiente para digerir alimentos e dispensar o leite materno.
Leite de vaca não é leite materno. Como o intestino mal preparado poderia digerir a substância? Como poderia excretar os resíduos? A barriga do bichinho inchava assustadoramente. Assemelhava-se a uma bexiga cheia de ar apoiada em quatro patas fininhas e vacilantes. A moça, que pensara que a agonia havia terminado com a descoberta do frasquinho de Novalgina, via-se diante de uma angústia maior ainda, que era não saber como interferir no curso da natureza.
Os pelos do bichano caíam e a barriga intumescia. Não havia nada mais feio num raio de dez quilômetros. Certo dia, entrando no quarto, viu-o numa posição inusitada. O gato fazia tanta força nas patas dianteiras que as traseiras se elevavam no ar, estremecendo e convulsionando, como se tentasse plantar bananeira. O que seria aquilo? Adivinhou: tentava evacuar. E tanto se esforçou que conseguiu. Que alegria foi ver aquelas poucas e fedorentas fezes! Faltava cerca de dez dias para completar o tempo em que ele poderia evacuar sem o estímulo da gata. O campeão vencera a natureza.
Na época, Viola jogava no Timão e emplacava cinco gols históricos no Vasco. E além de corajoso, também era preto. Decidiu: o nome desse lutador aí é Viola. Teve quem protestasse: o nome deveria ser Feioso ou Sapo.
O pelo voltou a nascer. Era parecido com bombril. A nutrição inadequada cobrava seu preço. Com 30 dias, apresentado a um pratinho com arroz e carne moída, teve a reação esperada. Comeu e estapeou a mão que, para testar, se aproximava do prato. Manteve o reflexo de defender a comida por toda a vida, quando os demais filhotes o perdiam em uma semana.
O tempo cura tudo. Principalmente no nível físico. Curou a desnutrição e a feiúra do pelo. Viola entrava no quarto mês negro, lustroso, esperto e brincalhão. Era a alegria da casa: guerreirinho arretado para sobreviver, canalizava o instinto de luta para os jogos lúdicos e fazia a alegria da casa com suas brincadeiras. Até o avô casmurro sorria.
Mas nem sempre cura os traumas. Três vezes por dia, subia no colo da dona e sugava a camiseta até deixar uma mancha imensa de molhado com a saliva. Não mamara o suficiente para desprender-se do reflexo de sucção e, procurando o ser humano cujo cheiro conhecera em meio à angústia, sugava e sugava, ansiando pela sensação desconhecida de aconchego. Fazia o mote das brincadeiras da vizinhança: mamãe gata, era como a chamavam.
Ninguém sabia que ela queria morrer. Tampouco souberam que, assistindo a luta do animalzinho fraco e indefeso para permanecer na imensidão da vida, apesar de todo o sofrimento e incerteza, mudara de idéia. Vale tanto assim para você, gato? Aceitas passar pela fome e pelo abandono, pelo medo, pela doença e pela dor, e ainda arranjar um meio de apressar a natureza? A vida vale tudo isso? Quem sabe para mim também deve valer.
Seis meses. Um gato esperto, brincalhão e querido. Pelo semi-longo e macio, quase prateado de tão brilhante. Olhos azuis e atentos. Patinhas rápidas, reflexos prontos. Bom de apetite, de sono e de riso. Três vezes por dia sugando camiseta.
E, certa noite .... um puxão na parte de trás da cabeça. Viola, ela pensou. A imagem surgiu num flash mental, um lindo gato preto estuando de vontade de ver o que viria com o dia seguinte. Onde você está? Saiu para procurar: um certo instinto a conduziu para a calçada em torno da edícula. Esparramado no chão, ele parecia dormir. Pegou-o: a cabeça pendeu. Morto. Atropelado. Pulara o muro para morrer em casa.
Seis meses: soma dos dias. Nada mais do que uma contagem. Adeus, campeão! Boa viagem! No céu dos gatinhos você acha a sua mamãe.
Tangará da Serra, 03/12/03.