O CRESCIMENTO DAS ÁRVORES
Tanto faz se o chamam de Jeová ou Tupy, de Pachamama ou Ceridwen. Havia um ser no começo de tudo, mente poderosa a conceber e materializar o átomo, vontade perfeita organizando miríades de partículas para formar tecidos, divindade entronizada no alento que sustenta a atividade dos organismos. E também não importa se a vegetação foi criada no terceiro dia, junto com os mares e os continentes, ou não.
O que importa é que, na sua criatividade infinita, aquele Ser não duplicou nenhuma planta. Havia apenas um exemplar de cada espécie, com as variações sobre o tema das subespécies. Todas se pareciam: raízes, tronco, folha e semente. Assim como dos poucos traços disponíveis para a fisionomia humana, fez-se um número incalculável de faces únicas, também com as plantas.
E cada uma delas se sabia sendo planta, consciente de seu tempo certo para brotar, florescer e repousar. Sabiam do clima que preferiam e do solo que necessitavam. Elas conversavam e não é impossível que andassem. O mundo sem a presença do bicho homem era um mundo sem sustos nem cautelas, aconchegado no colo da Mãe Natureza.
Os bosques fervilhavam com os cochichos das folhinhas, a relva estremecia coletivamente com as novidades dos ventos. Elementais, fadinhas e gnomos passeavam entre seus protegidos, companheiros fraternos e leais, vivendo, vivendo.
Repetir-se estava no destino delas, um destino chamado semente. Cada uma daquelas ancestrais confiou ao vento, ao solo e às aves esses pedacinhos de si, e esperou, e viu seus descendentes. Viram a si mesmos brotando, enraizando e florescendo, e sentiram que algum objetivo fora alcançado.
E a multiplicação do povo verde criou o cenário onde os animais e os homens foram acolhidos, quando chegou sua vez de ver a luz, não importa em qual dos primeiros seis dias, nem de qual material tivessem sido feitos. Os seres que tinham pele em vez de casca, pelos em vez de folhas, pernas em vez de raízes também vieram dotados de sementes onde a vida se enrolava em dupla hélice, escada de mil degraus em cujo topo estaria outro ser, estendida entre as gerações e prosseguindo até o infinito.
E elas tinham um outro destino, chamado “doar”. As folhas, as flores e os frutos, produtos delas mesmas, feitos de ar e água materializados, eram para proveito de terceiros. Mesmo as folhas caídas eram benções para o húmus da terra.
O humano e o animal aceitavam do povo verde o que estivesse disponível; e os bosques eram fartos, e a relva rasteira estava plena de surpresas. Comer demais e comer de menos eram dois extremos equilibrados pela generosidade da natureza e pelo instinto que dizia quando parar.
Nossos olhos não viram esse mundo onde uma árvore, por ser indivíduo único, podia até mesmo ter nome próprio. Não compartilhamos o assombro dos vegetais e dos humanos quando notaram que seus filhos eram cópias de si mesmos. A emoção daqueles dias tinha uma voltagem alta: tudo era um e o um era mil. Algo dessa comoção deve ter restado em nossas memórias ancestrais, porque procuramos repetir o projeto da criação com nossa tecnologia, e buscamos nas coisas vivas que criamos um laço emocional que nos ligue com nosso melhor lado.
Hoje vemos fileiras e fileiras de árvores idênticas nos reflorestamentos, filas de arbustos fazendo cercas vivas, jardins temáticos com aglomerações de miosótis azuis de um lado e listras de margaridas brancas no entorno. Mal podemos imaginar como seria um mundo onde as plantas não se repetissem.
A agricultura tira do solo brasileiro duas colheitas por ano; pessoas passam fome sem razão para tanto; a Mãe Terra doa, os homens aprendem a doar. Nossa busca por imitar o original reaprendeu a preservar esse original. E muitos de nós têm aprendido a saudar mentalmente as vidas enraizadas em nosso jardim, com consciência de que algo se escapa daquela imobilidade. Algo mais duradouro que a vida humana, não perturbado por paixões, cujo destino continua sendo doar.
Tudo melhora ou tudo piora, conforme o ângulo pelo qual se olhe.
Mas eu sonhei hoje com um caminho ladeado por árvores que não se repetiam e em cada uma senti a presença de uma alma fraterna que me perguntava: você esqueceu de mim?
Tangará da Serra, 29/11/03.