O QUE EU FAÇO COM ISSO???

A nossa professora de português, que, convenhamos, “não bate bem da bola”, veio com uma conversa de que a gente tem de conhecer até as palavras que não se usam mais. Pra quê? Pra quando a gente ler um livro antigo não precisar de um dicionário ao lado pra atrapalhar a leitura, dizia ela. Argh! Só leio porque ela pede e porque vale nota.

Um dia ela chegou na sala e disse: “Escrevam rapidinho o que vocês fariam com um ataúde.” Meu Deus! Que bicho era aquele? Nunca ouvi ninguém falar isso. Acho que nem a minha avó saberia. A turma fez um monte de coisas com ele: comia, guardava, dava de presente, pendurava na parede, deixava exposto na sala de visitas, tocava uma música; as coisas mais loucas! Até que a professora disse que ataúde é caixão. Cruz, credo! Trouxe até um texto com nome esquisito “Exéquias”, que são cerimônias fúnebres, pra gente interpretar. O Luiz Fernando Veríssimo devia ter uma avó mais sabida que a minha pra escrever isso.

Numa outra aula, ela pediu o que a gente faria com um “alfarrábio”. Fiquei com vontade de dizer que jogaria na cara dela. Ninguém sabia o que era e a turma deu um destino parecido ao do ataúde. Quando descobri que alfarrábio é livro soube o que fazer com ele: deixar lá no fundo da gaveta e só pegar quando a professora pedisse.

Então um dia, no rádio, tocou uma música gauchesca que dizia assim: “... gosto de sentir o vento me esparramando a melena...”. Ai, ai, ai! Era um daqueles palavrões que a professora costumava pedir o que fazer com ele. E eu tinha que saber se dava pra fazer outra coisa com a “melena”, além de esparramar no vento. Corri pegar um dicionário e pasmem: Melena é cabelo! Você já lavou a melena hoje? Já penteou, passou gel, colocou um enfeite? É, pesquisei e descobri que os gaúchos têm uns nomes bem estranhos para as coisas; cusco, é cachorro; bugio, é macaco; pingo, é cavalo; china, é mulher bonita, e por aí vai.

Não é que a professora tinha razão! Comecei a gostar desse negócio de procurar o significado das palavras que não se usam mais ou que não conheço. Ela até me convenceu de que a leitura é uma coisa encantadora; além de conhecer novas palavras, a gente pode viajar e conhecer lugares onde nunca foi, pode criar coisas que ainda não existem e, que talvez, nem existirão. Agora, acho que quem lê vira mágico do próprio pensamento.

Nas aulas de Literatura, estávamos estudando o Naturalismo, um período que se valia das teorias científicas do sec. XIX, o Darwinismo e o Determinismo Científico, que eu não entendi direito, mas que serviam para analisar e explicar o comportamento das pessoas, ela falou para nós sobre a obra “O cortiço”, de Aluísio Azevedo. Cara, uma história e tanto! Isso criou um “quiproquó” e tanto na aula. Ih! Você não sabe o que é isso, né? É confusão. Eu vi no dicionário.

Quem é que iria imaginar que num cortiço pode morar mais de quatro mil pessoas, isso é uma cidade! Mas esse cortiço é como se fosse gente, tanto que é considerado um personagem do livro. Pode isso? Mas eu gostei muito quando ela perguntou se a gente sabia o que era “coradouro”, que todo mundo pensou que era algo feito de couro, teve até quem achou que era uma fábrica de couro. Mas ela explicou, rindo. “Não, coradouro é onde as pessoas colocam as roupas ao sol, já ensaboadas, para poder tirar melhor a sujeira.” Ela até contou que a mãe dela fazia isso, quando ela era criança. Aí, alguém perguntou o que era “bica”, porque no texto dizia que as mulheres lavavam os rostos na bica e seguravam as saias para não molhar e os homens colocavam a cabeça embaixo dela e lavavam até o cabelo. Então ela explicou que “bica” é um cano ou tubo de onde escorre água e que era muito comum as pessoas usarem isso, quando ainda não havia água encanada. E a gente imaginou as pessoas todas se lavando, de manhã, num lugar desses. Que nojo! Não é à toa que o autor comparava os personagens com animais! “Rezingas” foi outra das palavras estranhas, e ela explicou que é resmungar, e mandou a gente parar de “rezingar” e prestar atenção na aula. Enfim, essa aula rendeu mais umas palavras que a gente não conhecia.

Essa minha professora merece um “ósculo”! Será que ela sabe o que é isso? Se não souber, que vá procurar no dicionário. Ah! Eu também gosto de sentir o vento me esparramando a melena, num dia frio, quando o Minuano, vento lá do Sul (isso eu descobri lendo), entra pelas narinas e refresca até o pensamento.

Meus amigos chamam o dicionário de “amansa burros”, mas eu acho que é “amansa inteligentes”, porque só vai pesquisar quem não quer ficar na ignorância. E eu aprendi muitas palavras, depois que fiquei amigo dele, e não digo mais tanta “trenguice”. Você pode não estar entendendo “xongas” do que eu disse, mas eu tenho que admitir que essas aulas de português, agora, estão “supimpas”! Ah, você não sabe o que é isso? Não fica “grilado”. Pega o dicionário!

Crônica publicada no livro Fragmentos (2016)

Cleusa Piovesan

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Cleusa Piovesan
Enviado por Cleusa Piovesan em 08/08/2020
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