A OLEIRA*, SEUS VASOS E A BICICLETA DE EXERCÍCIOS

Era um quadro pequeno, aquarela adquirida já nem se sabe bem em qual viagem e há quanto tempo. Decorava a parede do quarto que servia como sala de ginástica. Decorava, não, continua a decorar, junto com outros. Afinal de contas, os olhos necessitam exercitar-se assim como o resto do corpo, executando sua própria marcha pelo percurso das paredes, do teto, do que estiver ao seu alcance.

A imagem desse quadro específico retrata mulher no terreno adjacente à sua morada, a esculpir vasos de barro em variados formatos. Como foi pendurado bem defronte à bicicleta ergométrica do cômodo, é natural que seu usuário concentre a atenção muitas vezes nesse item da pinacoteca.

De tanto mirar, acaba por afeiçoar-se à personagem ali retratada e à respectiva atividade. Não se trata de afeição do gênero amor. Absolutamente! O “ginasta” tem certa idade e não se julga mais um jovem romântico capaz de apaixonar-se pela diva de alguma obra de arte. Prefere desenvolver relação de simples simpatia, amizade quando muito, no tocante à oleira.

Além do mais, difícil interpretar a idade da ceramista: jovem ou mais madura? A exemplo das árvores por trás da modesta casinha, a face da mulher tampouco foi pintada com traços mais nítidos. Pinceladas fugidias e singelas como a imagem que o artista quis retratar. Talvez um intento de “obra aberta”, daquelas que provoquem a imaginação do observador e levem-no a interagir com o que vê (ou acredita ver).

Enquanto pedala, sem que seu corpo saia do lugar, a mente do ciclista movimenta-se por todos os pormenores do quadro, embora tenda sempre a centrar-se na zelosa operária. Trabalha alegremente, satisfeita com seu afazer? Ou molda os vasos de forma mecânica, como se sua atividade fosse ainda mais repetitiva que o exercício proporcionado pela bicicleta ergométrica? Haveria, em seu rosto, sinal de tristeza por uma vida sem maior perspectiva? Essa última hipótese costuma invariavelmente ser afastada por quem valoriza a humildade das pessoas e o ambiente supostamente pacato e ameno do interior.

Havendo conhecido a roça onde vivia parte de seus familiares, o ginasta procura identificar na oleira outros artesãos e trabalhadores dignos de simpatia. Poderia até mesmo representar alguma prima, tia ou sua mãe, que jamais praticou o ofício de ceramista, mas demonstrava grande habilidade no crochê. Suas colchas e toalhas que o digam!

Pois é, tanta gente habilidosa no mundo e ele... seria hábil somente para tecer considerações vespertinas enquanto malha? Convence-se rapidamente de que não lhe falta valor e volta a atenção para o quadro diante de si. Paisagem bucólica, agradável de ver. Ora lhe parece tratar-se de manhã levemente ensolarada, ora mais bem poderia ser uma tarde, de temperatura igualmente agradável. O artista tivera o bom senso de não inserir chuva nem cores ou elementos capazes de deprimir a plateia.

Diversamente da oleira e de outros componentes da imagem, os vasos afiguram-se mais definidos em suas formas e colorido. Teria o pintor significado, com esse pormenor, que a criação se reveste de maior relevância do que seu criador? Postura de humildade, merecedora de elogios, decerto, mas semelhante interpretação decorre, possivelmente, de pedalada em falso na empolgação do exercício (físico e mental).

Eis que de súbito o ciclista se cansa de tantas conjecturas e toma a estrada rumo ao local em que habita a ceramista. Já trafegara por ali tantas vezes no passado que tudo lhe parece familiar.

Pouco mudou nestas paragens. Árvores abundantes, algumas quase centenárias, e raras pessoas a caminhar nas margens da estrada. Tomando uma via secundária, logo avista a pequena propriedade e, descendo da bicicleta, abre o portão e adentra o terreno. A mulher lá está a modelar o barro. Sorri-lhe e dá as boas-vindas.

Pergunta-lhe se quer pintar os vasos já cozidos no único e diminuto forno, também de barro, de sua olaria. O ciclista cogita ajudá-la, antes, a moldar as unidades que faltam, mas depois reflete que não se sente talhado a pôr a mão na massa. Melhor tentar a tarefa de pintura, na qual não se saía mal nos tempos escolares.

Decora o primeiro pote que lhe inspira o uso de determinadas cores brilhantes. Concluído o serviço, aguarda a opinião da amiga. Tantas contemplações de sua figura no quadro já a transformam em amizade de longa data. Vendo-a assim de perto e em carne e osso, confirma que acertou nos cálculos de que ela deveria ter em torno de trinta anos. A pele revela-se lisa, em traço de relativa juventude, embora o cotidiano na roça maltrate a gente, como ele bem sabe.

Seu trabalho de pintura recebe a aprovação da oleira, o que o deixa feliz, mesmo suspeitando da indulgência derivada da camaradagem.

Conversam longamente pelo resto da tarde. Quando o sol se põe, ele retoma a bicicleta, despede-se da ceramista e parte para mais uma noite corriqueira entre amigos na cidade grande, certamente sem vasos de cerâmica no cardápio das conversações. Com sorte, pode ser, no entanto, que venham a trocar impressões acerca das artes em geral ou então do papel das olarias na estrutura econômica e social do país.

Julho 2020.

* Apesar de o dicionário (machista?) qualificar oleiro de substantivo masculino, este texto rebela-se contra tal restrição e adota a suposta versão feminina do termo.