NEGUINHO

Viera da Bahia e enrolava cadeiras. Uma profissão que o capitalismo esqueceu. Todos cruzavam com ele em algum momento. Todos o chamavam de Neguinho. Era visto por toda a cidade com seus rolos de fios enfiados no braço e seu físico franzino de criança mal nutrida. Morava num quartinho e muitas vezes bebia. Não era propriamente miserável, pois tinha profissão. Tampouco sonhava com algo chamado futuro. Não era feliz e não sabia se era infeliz.

Era uma pessoa honesta e limpa. O corpo e as roupas surradas denunciavam o hábito da água com sabão. Tivera alguma criação, enfim, antes de embrenhar-se pelo Mato Grosso dourado e promissor. Pecados não tinha além da bebida. Sequer era dado como suspeito aos olhos da polícia, quando passavam em suas rondas atrás de ladrões e contraventores.

Transcorria sua vida de biscateiro na próspera cidadezinha. Era uma nota de resignada tristeza na paisagem ensolarada. Uma sarda no rosto da cidade. Folha mirrada no ramo verde. E, à sua maneira, participante e presente. Todos o conheciam. No centro e nos bairros. Era visto e logo a seguir descartado. Os vendedores de salgados sabiam que ele não era cliente. Os lojistas sabiam que ele estava só de passagem. Sempre visto e sempre de passagem.

Um dia esteve aqui em casa consertando a cadeira de macarrão. Tinha bebido um pouco, estava na fronteira entre cambalear e derramar confidências. Desatou a língua. Disse coisas sem sentido. Reclamou da solidão. Pediu que lhe fizessem bife de fígado. A dona da casa, por caridade, foi e fez. Mas no dia seguinte já tinha esquecido a pessoa e seu discreto brado por socialização, inclusão e relacionamentos humanos. Ele não era problema de ninguém.

O frio veio. Não esse frio cruel do Sul, mas cruel o suficiente para quem se acostumou a temperaturas altas. Passei por ele na rua e o vi acompanhado de dois cachorros, sem os fios no braço, com aquele olhar brilhante dos ébrios. Também passei por ele na volta. Tinha se enrodilhado num banco de cimento e dormia. Esquecido de si e sabendo que o deixariam dormir, ele, que todos conheciam, repousava. Confiava. Era da cidade, a cidade era dele. Ninguém o tiraria do seu sono para reclamar o banco. Ninguém o perturbaria ou o agrediria. Estava seguro. Protegido pela indiferença. Aconchegado no frio seio de pedra, pequeno e humano, além do alcance das arestas da vida.

Tangará da Serra, 04/06/2020.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 07/08/2020
Reeditado em 16/04/2021
Código do texto: T7028593
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