MULHER EMOLDURADA

- Não passa de uma escolha. Quando foi que deu para ter tudo de uma vez?

Tinha 25 anos quando se deu conta de que precisava escolher e não haveria volta. Raramente discutia o assunto. Era de se ver esquecido, mas não esquecido, enquanto os dias rodavam na roca das horas.

Mas eram os dias que ela amava mesmo, não os sonhos das jovens noites. Sabia que seriam dias iguais entre si, e talvez essa mansa uniformidade pudesse ser chamada de felicidade. Amor? Não era caso para tanto, aliás, era sólido demais para ser amor. Tinha que ser Amor com “A” grande, o amor que esquece de si mesmo e se mescla na tessitura de mansos dias gêmeos.

Não era de grandes aventuras, podiam pensar os desavisados. Engano. Ela tinha o espírito do explorador e por isso mesmo já intuía o que depois veio a saber: todos os caminhos acabam no cemitério. Para quê, então, querer ser mais do que mais uma na multidão?

Numa cidadezinha onde criticavam as moças por não casar cedo, ela era criticada por casar cedo, tanto viam nela o potencial para médica. Era isso: potencial. Desde cedo manifesto e reconhecido, aflorado à leitura desordenada ora de livros escolares, ora de livros mais técnicos que tirava da biblioteca.

Teve seus dias de artista do diagnóstico, quase como se alguma célula olfativa do seu delicado narizinho tivesse ensinamento especial para distinguir o caso grave do agudo.

O vizinho gostava de lembrar o dia em que ela, meninota, vendo-o fazer uma careta ao se inclinar para pegar as hastes da carriola, dissera: - É apendicite, moço. Tem que cortar logo antes que espalhe. E, quieta, ficara parada, olhando-o bem nos olhos com toda a serenidade, até que o peso de sua certeza juvenil o levara a se consultar. Surpreendente o peso de uma certeza combinada a um olhar sereno. E mais tarde, diante do médico local, repetindo o prognóstico, poupara a si e a outrem uma longa caminhada entre exames por um caminho mais curto em direção à cirurgia e à cura.

Ela podia, sim, eivar o dom natural com estudo, prática e por fim, o título de doutora. Dinheiro? Se arranja. Mudar para a cidade grande? Se acostuma. Ter medo? Se supera. Incentivada por todos os lados, ela ficara, parada e serena diante de sua encruzilhada pessoal.

Quando escolheu o casamento com o namoradinho de toda vida, elevou-se um “Oh!” coletivo de protesto. Mas decisão de 25 anos decidida está, e dia por dia, sempre à mesma hora, eis a moça varrendo, coando, tirando, botando, passando, lavando. Na hora da modorra, simplesmente se postava à janela e ficava olhando a rua, casas sem cerca, conhecidos de longa data, todos à vontade para esparramar o privado da casa para o público das varandas, calçadas e até mesmo na própria rua, no jogo de betes que era o modismo entre a molecada.

Passemos todos os dias à mesma hora por aquela rua e ela estará lá, emoldurada na janela. Como uma monalisa da roça. Segurando um segredo na linha curva do meio sorriso.

Tangará da Serra, 09.06.2017

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 07/08/2020
Reeditado em 16/04/2021
Código do texto: T7028588
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