DESENGANO

Ele era um bom rapaz e ela uma boa moça. Casara por amor e esse amor se adelgaçara com o tempo, restando um fiapo fininho reforçado pelas fibras do dever. Ele deixou de ser um bom rapaz, enquanto ela se tornava uma boa mulher.

Três filhos nasceram. O primeiro tinha hidrocefalia e chegaria aos 21 anos numa cadeira de rodas, quase cego, falando indistintamente, mas ouvindo bem. No sorriso meigo do filho, a mãe encontrava alento e um encanto que ninguém mais percebia. O pai sempre o olhara de longe, com um misto de culpa e indiferença. As irmãs cresceram normalmente, a mais nova contrastando com a mais velha pelo juízo precoce.

Ela costurava para fora e dava aulas. O marido se empregava, recebia e bebia até ser despedido novamente. Nessas fases ficava em casa, exigindo da mulher mil compensações emocionais e apoio financeiro. Usava o argumento da falta de carinho em casa para justificar aventuras extraconjugais. Inocente para as armadilhas do vampirismo alheio dedicara anos e esforços tentando ajudá-lo. Culpava-se por viver tão atarefada com as crianças e com o serviço, mas não via como mudar isso.

O sogro precisara de ajuda para conseguir uma casinha num programa habitacional. Ela conseguira o conforto para o velho através do pai de um aluno. Poucos meses depois, pai e filho, em meio a garrafas de cerveja na cozinha, a acusavam de não fazer nada na vida.

Revoltar-se vai contra a decência mais básica. Por longos momentos encarou-os, sem acreditar no que ouvia, enquanto os bêbados martelavam e desenvolviam o discurso acusador. Por fim, acreditou. Abandonando a panela ariada a meio, trancou-se no quarto para chorar. Em pouco tempo conseguia um divórcio. Mas não a liberdade. Nas fases de desemprego, ele voltava e pedia para ficar uns dias. Apiedada, deixava. E por mais alguns anos reprisou essa novela.

Apesar da tristeza, mantinha a esperança de atingir uma situação de vida menos problemática. A menina mais velha, com dezesseis anos, queria arrumar emprego para ajudar. Conseguiu uma vaga numa barraquinha de sorvete, durante a temporada de praia. Feliz estava a menina. Se sentia adulta e responsável, acreditava que poderia melhorar tudo para a família. Passou a empregar-se no verão pelos três anos seguintes.

Conheceu um homem dezessete anos mais velho. Namoravam com o conhecimento da mãe. Vai ver, está procurando um pai, pensava ela. Confiava na educação que dera à filha, até o dia em que, depois de uma fase de rebeldia inexplicada, a menina confessou estar grávida.

Procurou o pai da criança para conversar. Aquela menina não pensa bem no que faz, foi a resposta. Se puder ajudo, prometeu vagamente. O tempo corria, a barriga crescia, as mãos habilidosas costuravam o enxovalzinho. Seria necessário uma cesariana. Raspando o fundo do tacho, a mãe conseguiu os trezentos reais para a anestesia. Ele só apareceu depois que estava tudo resolvido. Tornara-se avó e ainda tinha dois filhos dependentes, acrescidos da jovem mãe e do bebê.

O ex-marido não poupou críticas. Bastava que adentrasse a porta para que o clima da casa se tornasse pesado. Falaria por horas da preguiça e da irresponsabilidade das mulheres, da pouca vergonha dos jovens e das injustiças do mundo. Estava em uma de suas fases de desemprego e sendo cobrado na justiça por outra mulher com quem tivera um filho. Pelo menos não se atreveu a pedir dinheiro para a pensão, pensou ela.

Chegava o inverno. Acumulava dois turnos na escola, mais um na costura e os minutos restantes no serviço de casa. Dormia exausta e acordava cansada. O filho deficiente também inspirava cuidados. Perdia os dentes, contraíra uma pneumonia que obrigou a uma longa convalescência. Dividia-se entre a máquina de costura, as aulas e as inalações. Sentar-se por meia hora numa cadeira, simplesmente olhando a rua, tornou-se para ela um sinônimo de paraíso. A filha mais velha, encantada com seu bebê, pouco ajudava. A mais nova passou a assumir tarefas superiores às suas forças.

Pelo menos fiz de minhas filhas duas moças decentes, consolava-se. Esperava que a mais velha retomasse os estudos e se tornasse também professora. Ela dizia estar arrumando emprego. Certo dia ela chegou em casa em companhia de um senhor de meia idade, muito bem vestido, que dirigia um Vectra. Mamãe, esse é o meu amigo senhor Fulano. Num relance passou-lhe diante da vista as novas roupas da filha e os horários desacertados em que chegava.

Teve vontade de entregar os pontos. Nunca o cansaço pesara tanto. Estava claro o que a filha estivera fazendo. Mas olhou o filho na cadeira de rodas, magro e desdentado, sorrindo docemente. Os sérios olhos da mais nova. O sofá onde o ex-marido passaria o dia inteiro dormindo na próxima fase de desemprego. Respirou fundo e disse: como vai o senhor?

Tangará da Serra, 01/02/2004.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 07/08/2020
Reeditado em 16/04/2021
Código do texto: T7028586
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