Sem Tempo Para Perder

O cheiro de café e do pão quente perfuma a cafeteria onde todas as manhãs marco ponto, antes do trabalho. Lugar agradável, recompensa a longa espera. Até chegar a minha vez, apresso-me em conferir os recados no WhatsApp.
- Nada de novo, o dia mal começou. Perda de tempo!

Digo isso reiteradas vezes para meu interior surdo, indiferente e à deriva, por conta da bendita dependência tecnológica. Não existe vida sem o celular! Não consigo me desvencilhar desta praga. E quanto termina a bateria? Meu Deus! Perco o ar, a noção, o rumo, a lógica, morro! Tudo ao mesmo tempo! Sem falar na profusão dos tiques – liga, desliga, quer dizer, não liga, mas fico lá tentando, como um aglomerado de pessoas que aguardam pelo elevador - todos apertam o botão para o mesmo andar. Ando de um lado para ao outro.

Surgem mil coisas para fazer quando ele adormece. Se estou dirigindo, justamente quando a bateria desmaia e a serpente para conectá-lo nem sei onde deixei, me lembro de uma série de telefonemas que deveria fazer. Sei que o demo prateado não combina com volante. Que sufoco! Visto-me de mau humor e estresse.

E os sintomas não param por aí. Rotineiramente, mal entro em casa, ainda que não tenha ninguém, antecipo-me em alta voz: “Preciso carregar o celular”. Primeiro ele, sempre ele! Depois conversamos. Depois? Quando? Eu e todo mundo anda meio que assim, vivendo em função deste monstro impositivo, dominador, ditador das regras, criado pelo ser humano para facilitar a vida, mas que ao final tornou-se o regente absoluto do mundo virtual movido pela simbologia – corações, estrelinhas, polegar indicando tudo bem, mãos unidas em ação de graças e sons. Se não bastasse, espremeu na parede o vocabulário da humanidade, minguou os gestos e as palavras. A gente sabe de tudo isso, mas, ainda assim se entrega. Que paranoia, que horror esta dependência! O dominador absoluto das vontades: desfaz casamentos, desagrega famílias, aliena as crianças desde a tenra idade – muitas ainda nem aprenderam a pagar, mas já deslizam os minúsculos dedos na tela. E tem mais: coloca os sentimentos no automático, elimina abraços e diálogos, afasta as pessoas. Cada um em seu quadrado, quer dizer, grudado em seu retângulo de última geração. Que solidão!

Exagero este modo de ver o monstro? Não! Realidade! Basta dar uma espiada em qualquer lugar – restaurantes, escolas, igrejas, reuniões familiares, consultórios, velórios, salas de espera, etc, etc, para ver o amontoado de gente com a cara literalmente enfiada no algoz.

Dia destes, Selene Maria, uma das manicures do salão de beleza que frequento, surtou e, num gesto inesperado, arrancou-o das mãos da cliente e dotou-o de um imaginário e potente par de asas para fazê-lo voar até o lado oposto do recinto – e o lugar não é pequeno! Não sem antes dizer, uns dez tons acima do normal: “Caramba, assim não dá, a senhora não me deixa trabalhar! Tem mais de uma hora que tento esmaltar as suas unhas! Gosto do que faço e preciso do emprego, mas assim não dá, a senhora atrapalha e não percebe, que coisa! Não desliga o celular! Fui!”

E Selene Maria deixou a madame paramentada de joias, com cara de nada! Imaginem a fúria da coitada, totalmente transtornada, enquanto a clientela se acomodou no silêncio sepulcral, olhares espichados e risinhos no canto da boca.

– Estela, termine de atender a Doutora Esmeralda!

– Doutora, não ligue, Selene Maria anda meio sem paciência – justificou Adonias, o proprietário do negócio, não sem antes se desfazer em gentilezas, presenteando a inconveniente com duas sessões de massagens. – Aceite, para recompensar o estresse que a minha colaboradora lhe causou. Me perdoe!

– Imagine, Adô, estou acostumada com estas meninas pavio-curto. Não se preocupe, ela é nova, um dia aprende. Mas pelo destempero, não cabe aqui, não é, neste seu salão requintadíssimo.

– Claro que não, minha deusa, ela será dispensada!

Que troca de purpurina! Os clientes assistiam à bajulação – a adulada se desmanchava em caras e bocas. Insuportável. Porém, as cifras bancárias vestiam-na com o escudo do bem-querer.

– Estela, aguarde um pouco, Greiza servirá um chá. Dra. Esmeralda precisa se recompor! Daqui a pouco você esmalta as unhas dela! Olha que perfeição! Não são lindas?

A manicure concordou, mas falando lá com o zíper de sua jaqueta, pensava na injustiça sofrida pela colega de trabalho e na cara de dia de festa que teria de fazer para atender a mal-educada.

– Oi, Doutora! Sempre linda, que pele! E o bom gosto, então! E não é que hoje tem aqueles biscoitos que a senhora ama!

– Não acredito, Greiza, jura! Que ótimo, fofa! Mas me diz uma coisa, vêm na bandejinha de prata, como de costume? Adoro estes mimos!

– Vêm com tudo o que a Doutora tem direito! E hoje a bandeja vem forrada com uma toalhinha de crochê, herança da Vó Maria, tudo para deixar o seu chá mais saboroso – respondeu a copeira, exibindo a coleção de dentes recém-comprados a longo prazo, emoldurados pelo batom carmim.

Como dizia minha saudosa mãe, “com que pode não se brinca”. No dia seguinte, Esmeralda recebeu algo inesperado. Adô lhe mandara um ramalhete de rosas mais vermelhas do que a cara da Selene Maria quando saiu esbravejando do salão, acompanhado de um aparelho celular modelo última geração e do providencial cartão reiterando os pedidos de desculpas pela atitude da manicure, que enfrentaria um longo período atrás de emprego. Por causa de quê ou de quem? Ora, por conta do monstro movido a bateria, regente da grande orquestra universal cujos componentes se identificam como “os entretidos para sempre”.

Entretidos, alienados ou distraídos, não sei! Penso que, do jeito que a epidemia se espalhou, seria preciso criar um programa de alcance universal para o monstro ser literalmente desligado por um período diário, ou inventar-se o “horário de noção”, como o de verão, porém com pelo menos 6 horas diárias de pausa. É de se pensar! Quantos benefícios isso traria! Além de reintegrar as pessoas e devolver a infância às crianças, teríamos economia de água, gás e energia, com o término das rotineiras panelas queimadas, das torneiras abertas e da comida desperdiçada. Consumo consciente, responsável e sustentável. A natureza agradece, a família mais ainda!

E tem mais! Muitos pais voltariam a dar atenção aos filhos. Porque ultimamente, o que tem de gente terceirizando tudo, até a responsabilidade de transmitir valores essenciais para as crianças – como diziam os antigos, aqueles que vêm do berço, nem se fala. A dinâmica atual funciona mais ou menos assim para muitas pessoas: se os recursos são parcos, a escola pública deve cuidar de tudo – amar, ensinar e educar. Tudo cumprido por abnegados educadores sujeitos a jornadas triplas, pagas com salário raso. Já quando a criança vem ao mundo no chamado “berço dourado”, alguns pais tentam se eximir dos deveres matriculando-as em colégios de ponta e arrumando inúmeras atividades extras. Não sobra espaço para os diálogos. Temos crianças abarrotadas de atividades, com o tempo espremido entre as tarefas, o computador e o celular. E adultos entregues ao mundo virtual.

Muitos pais proporcionam viagens e abarrotam a casa de brinquedos, às vezes doados na caixa, especialmente os jogos que precisam de mais de um participante para brincar. Nunca têm tempo. Conversar em família, só no grupo de WhatsApp criado para facilitar o contato, “lugar” onde se resolve tudo. E ainda tem pais que reclamam se os filhos pedem atenção. Acham que por enfiá-los em colégios caros, pagando babá até que completem 20 anos de idade – o que inclui não só os cuidados nas limitações do lar, mas também o acompanhamento nos passeios, cinema, aniversários de amigos e viagens – podem se dar ao desfrute de viver na concha do comodismo, sem qualquer interação.

Indiferença, descaso, apatia... vidas vazias. Enquanto isso, o monstro ganha asas, fôlego e espaço, impondo-se cada dia mais. Até quando?

 
Ana Stoppa
Enviado por Ana Stoppa em 07/08/2020
Código do texto: T7028458
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