Réveillon e "quilinhos a mais"
Era meados de novembro de 2001 quando seus amigos a viram animada pela última vez. Ela organizou um churrasco para comemorar o réveillon que passaria bonita.
Assim como a grande maioria das mulheres que já passaram por esse mundo, ela também foi convencida de não ser suficiente. Suficientemente capaz, suficientemente magra, suficientemente bonita, suficientemente feliz. E realmente ela não era suficiente, ela transbordava. Transbordava alegria, trans-bordava humildade, transbordava amizade e, hoje, transborda saudade.
Em virtude dessa violência psicológica que sofreu, insistia em tratamentos para perder os “quilinhos a mais” que tanto a incomodavam. O que ninguém nunca soube explicar é qual o limite para um quilo ser a mais. E por que tentar amenizar a tortura chamando de “quilinho”. Ela não era obesa mórbida, a questão não era a saúde, queria ficar bonita como o modelo social que se impunha. Entrou e saiu de dietas, passou temporadas em clínicas e “spas” e nada acalmava seu espírito.
O peso de encaixar-se em um padrão questionável cegava-a de perceber-se especial. Ostentava um sorriso esfuziante, uma gargalhada contagiante e um senso de humor incrível. Além disso, trazia consigo uma rara condição genética, a heterocromia. Um olho castanho e outro esverdeado a tornavam especial dentre tantos olhares ordinários. Sem contar o fato de ser gêmea, outra condição pouco comum. Ou seja, o pacote de especialidades superava em muito a silhueta que incomodava.
Curiosamente os detalhes que tornam cada pessoa única incomodam sobremaneira àqueles que são ordinariamente insossos. Na impossibilidade de se tornarem especiais transformam em adjetivos suas características mais comuns e em defeitos o que é inerente à condição humana: a individualidade.
Após o churrasco organizado ela internou-se ansiosa e esperançosamente para realizar um procedimento cirúrgico que reduziria seu estômago e curtir o réveillon, com os tão esperados “quilinhos a menos”, mas algo saiu do pretenso controle que supomos ter e ela mergulhou em um período de coma que duraria dois meses. Não aproveitou a festa que tanto ansiou e no dia 30 de janeiro de 2002 encontrou a paz que tanto perseguiu.
Hoje a lembrança mais recorrente é sua foto ao lado de um girassol e a cantiga que encerra o folheto de sua missa de sétimo dia: “sorriso de menina nos olhos de mar; abrace essa cantiga por onde passar; nasceu na paz de um beija-flor um verso de amor; já despontam os olhos da manhã, pedaços de uma vida que abriu-se em flor.”.
Aos amigos e parentes, fica a saudade, à sociedade a tranquilidade e a despreocupação com os “quilinhos” de mais uma mulher atormentada com a padronização do que deveria ser único.