CHEGOU O VOADOR
Adivinhe você, leitor, de quem estou falando. Difícil será. Em 1969, no início do ano, abrem-se as inscrições para o Vestibular da UFMG. Nessa época ainda não era o vestibular único, nem, para entrar na faculdade, tinha que fazer a prova do ENEM. Eram outros critérios. Findava-se, nas escolas de ensino médio, particulares ou públicas, o ano letivo, e os alunos que concluíam o segundo grau sonhavam em passar no vestibular e começar seu novo período escolar, onde, certamente, escolheriam um curso que definiria uma profissão para o futuro.
Este redator, terminando o Curso Clássico no Colégio Municipal de Belo Horizonte, não poderia ser diferente. Fugindo das Ciências Exatas do Curso Científico, já que tinha dificuldade com a Matemática, a Física e a Química, dedicou-se às Ciências Humanas, achando que esse seria o caminho a percorrer, não somente na escola, mas para seguir até o fim de sua vida.
Pois então. Em 1969, no início do ano, lá estava eu, na Rua Carangola, 288, no Bairro Santo Antônio, em Belo Horizonte, sentadinho em uma das carteiras escolares da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas de Belo Horizonte - FAFICH-BH, como era conhecida, dando início às provas do Vestibular. Recém-formado no Curso Clássico, com a cara e a coragem, resolvi enfrentar o desafio. Não é que logrei êxito! Fui aprovado. A emoção foi muito grande. A alegria nem se fala. Não esperava que fosse conseguir aprovação logo na primeira tentativa.
As aulas começaram em março de 1969. Minha sala de aula era a última do lado esquerdo, no sétimo andar do prédio da Rua Carangola. Éramos, aproximadamente, uns quarenta alunos. Minha turma era a de letra B. Havia mais alunas do que alunos. Digo a você, meu leitor, que não foi fácil encarar o curso que escolhi – Letras – Português. Muita exigência, muito trabalho. A matéria mais difícil para mim, assim julgava, foi Linguística. O nosso professor, Mário Perini, era muito exigente sem contar que o conteúdo era desafiador.
Muito bem. Comecei este texto com uma pergunta e ainda não cheguei à resposta. Vamos lá. Após o recreio, lá pelas 9 horas da manhã, os alunos, muitas das vezes, demoravam a retornar para a sala de aula. Enquanto os professores aguardavam a chegada dos alunos, havia aquele zum zum zum, normal, até que a aula começasse. Nisso, eis que surge na porta de entrada da sala, meio ressabiado, um rapazinho, meu colega, meio “cabeludinho”, tipo assim, interiorano, e eu, sem saber quem era aquela criatura, comentei com um companheiro do lado: “Chegou aí o voador”. * Voador, para quem não sabe, significa um aluno que não prestava atenção às aulas, que não, talvez, levasse os estudos a sério. Adivinha de quem estudou falando. Do hoje Vice-Cônsul do Brasil no Paraguai, trabalhando em Ciudad del Este, naquele país, o professor e jornalista, poliglota, escritor (possuindo alguns livros publicados), William Jaques Pereira Santiago. Conhece grande parte do planeta. Trabalhou, servindo ao Itamaraty, em diversos países, da Europa, Ásia, Africa, América Central etc. etc. Rodou grande parte desse mundão. De onde viera? Da Sétima Vila do Ouro de Minas Gerais - Pitangui. Isso mesmo. Aquele rapazinho humilde, simples e ressabiado foi a quem eu chamei de “voador”. Ai, meu Deus! O pior é que ele não reclamou "nadinha" comigo. Talvez tenha pensado: “Este sujeito de Belo Horizonte, capital, me humilhando... Vou mostrar a ele quem é o voador.” E mostrou mesmo. O William, durante os quatro anos de faculdade, era um dos melhores alunos da sala. Super-inteligente, ajudava os companheiros a interpretar obras literárias complexas, de autores brasileiros e portugueses. Destaco uma, dentre várias, a do português Alexandre Herculano, Eurico, o Presbítero. Nos seminários promovidos por nosso professor de Literatura Portuguesa, Juarez Távora de Freitas, irmão do médium José Arigó, de Congonhas-MG, já falecido, o meu personagem, um dos melhores amigos de toda minha vida, se destacava.
Pois é! O William me jogou na cara a frase ou a expressão “chegou o voador” muito tempo depois. Nem me lembrava. Fiquei até envergonhado quando ele me lembrou do episódio. Quem diria, “o voador” se tornou, desde 1969, até hoje, já estamos em 2020, um de meus melhores amigos. Uma de suas marcas a qual não posso deixar de registrar é seu bom humor. Não nos faltaram, na maior parte das vezes os momentos de descontração e alegria. Mesmo que as coisas não estivessem tão boas, sempre tínhamos uma piada nova, ou mesmo repetindo uma piada velha, para darmos boas risadas e fazer também rir a nossa companheirada da sala de aula.
O professor Santiago, como costumo chamá-lo, me conquistou, principalmente pela sua humildade e simplicidade. Também sou do interior de Minas Gerais, da cidade de Rio Espera, e acho que, pelo fato de sermos de cidades pequenas, acolhedoras, ele, de Pitangui, como já disse, pude enxergar no amigo a pureza da alma, a simplicidade, a espontaneidade, a sinceridade e tantos adjetivos que nem preciso acrescentar. É fácil de imaginar.
Não querendo me alongar muito,apesar de já ter me alongado, quero deixar registrado aqui, mais uma vez, o maior respeito e afinidade que tenho por esse amigo, tão amigo, que fiz na Faculdade de Letras da UFMG. Tenho muito orgulho de fazer parte de seu rol de amigos. Nossa amizade será eterna.
* Observação:
Acrescento que o Paulo Wangner de Miranda, aluno do curso de Alemão, também de Pitangui, estava junto com o William naquele momento. A minha crítica debochada estendia-se a ele. Paulo é atualmente Ministro, cargo na Diplomacia Brasileira. Foi Embaixador do Brasil em Granada, na América Central. Trata-se de uma pessoa muito culta e um especial amigo conquistado na época e mantido até os dias de hoje.