O reflexo nas sombras

Como era costume, nesses momentos sombrios, de pura solidão, ele sentou-se em frente à poltrona que jazia num canto em penumbra. Aguardou.

Olhar fixo na poltrona e, ao dilatar de suas pupilas, o contorno do encosto deu vez à familiar silhueta. Encararam-se por longos e doídos minutos. Um silêncio sepulcral apossou-se do ambiente e apenas os pensamentos eram ouvidos, ritmados pelas batidas dos corações igualmente atormentados.

Seus movimentos, furtivos e precavidos eram lentamente espelhados. Como se os dois corpos pre-vissem o que seu duplo faria. O Respeito respirava fundo e pausado e ambos organizavam as ideias torturantes para o embate psicológico que se desenhara. Palavras seriam ditas, mas as emudecidas teriam muita mais a dizer.

Embebeu-se de coragem e começou: “o que faz aqui, já não o expulsei de minha casa?”. O outro, envolto nas sombras, jogou: “eu nunca vou realmente embora”, e assim continuaram:

- E por que insiste em ficar?

- Porque você não existe sem mim.

- Quem não existe sem mim é você!

- Mas é sempre você quem me chama com esse semblante angustiado, esperando que eu traga as respostas que corroborem suas verdades.

- É você quem se convida e invade meus pensamentos se apossando de minhas ações e sentimentos.

- Ações? – Tripudiou.

- Sim! – exasperou-se – As ações que me furtas, tornando-me um mero expectador da minha própria vida.

- Sem mim não existe vida, apenas um apanhado de dias que se extinguem sem um vestígio sequer de objetividade, como um tufo de poeira se esgueirando pelos cantos da casa.

O silêncio pesa, claustrofobicamente, sobre todo o cômodo. Eles se ajeitam em suas poltronas na esperança vã de aliviar seus corpos retesados. Como enxadristas reavaliam suas estratégias e, finalmente, ele rebate.

- Não gosto de você! Sua presença me causa extremo desconforto.

- Mas eu sou inevitável. Do contrário tudo seria solidão, silêncio, angústia. Eu sou o mal necessário, a-quele que expurga seu sofrimento em palavras. Sou a treva que clareia, a tempestade que trás a bonança, o iceberg abaixo d’água.

- É um preço alto a se pagar! Que triste alma sou eu que alimento um demônio com meus sentimentos mais profundos. Que tenho um demônio como amigo mais fiel e sincero.

- Pois sou o demônio que te conduzirá aos céus, pois é aqui que seus sentimentos habitam e sangram toda vez que não consegue agir.

Nesse exato instante os dois corpos se inclinam em direção um do outro e ele percebe, dentro do abraço, que são indissociáveis, pois só assim é possível seguir: mantendo seus pensamentos adormecidos até que a solidão o convide, uma vez mais, a encarar seu reflexo nas sombras.