ADIANDO OS PLANOS

Nunca desejou outro roteiro para sua vida. Nascer, crescer, casar. Criar os filhos. Retomar a própria vida em novos papéis quando os jovens se emancipassem. Assim tinha sido com sua mãe e com sua avó, assim seria com ela.

Quis bem aos três filhos, especialmente à menina, que seria sua amiga e confidente nos anos da velhice. Na vida modesta que pudera lhes dar, esse carinho era um valor constante. Talvez tivesse sido demasiado rigorosa quando eram adolescentes e lhes impusera horários, talvez tivesse sido permissiva demais quando não os obrigara a trabalhar mesmo quando o marido estava desempregado. Enfim, certas coisas se compensam sozinhas no final. Calmamente se preparou para a fase seguinte.

Recentemente realizara um velho projeto, colocando num álbum de boa qualidade as fotografias mais significativas da vida de casada. Ela e o marido, jovens e magros, na pracinha da cidade. Em pé diante de um renque de arbustos floridos, ela de saia rodada, ele de costeletas, pareciam tímidos e desajeitados.

No casamento, a parentela de cada lado cerrava fileiras em torno do novo casal, arrumados e compostos. A primeira casinha, dois cômodos alugados, uma cortina de plástico no lugar da porta do banheiro. Um lote daí a cinco anos, depois de um curto período morando com a sogra. Com o primeiro filho nos braços, olhava o início da construção com um sorriso bem disposto. Outra casinha de dois cômodos até que a chegada dos gêmeos impusera um aumento na moradia.

Fotos de bebês gorduchos ocupavam páginas e páginas do álbum. Quisera ter colocado todas: obrigada a selecionar para que houvesse espaço, relutara muito na escolha. Todas pareciam tão significativas. O mais velho com seu cachorrinho nos braços, os gêmeos juntos no berço examinando um chocalho. O primeiro dia de aula, aquela fisgada dolorosa da primeira separação, evocados na foto onde um menino sorria mostrando falhas na dentição, dentes de leite na boca. O gêmeo de braço quebrado ao lado da irmã no seu vestidinho de primeira comunhão.

Ela perdera a mãe. Ele aparecia sentado ao seu lado no braço do sofá, confuso ante o sofrimento da parceira. Atravessaram juntos o período de luto, com poucas palavras, mas muitos olhares trocados nos momentos de busca de apoio. Depois ele perdera o pai e fora sua vez de sentir a impotência diante do sofrimento de um ser amado. Cada um quisera dar lugar na casa para o genitor querido que ficara viúvo. Na fotografia do almoço de dez anos de casamento, estavam todos juntos. As crianças se alinhavam educadamente ao lado dos pais, como sempre tinha sido, e os velhos se assentavam à cabeceira da mesa.

Tempos fáceis, tempos difíceis. Tudo lá, gravado no filme. As formaturas dos três, primeiro no ginásio, depois no colégio e enfim na faculdade. A fase de mais intenso esforço era justamente aquela em que o trabalho de criar e educar estava quase completo; ninguém lhe avisara disso. Sentia saudades daquelas infâncias que lhe impunham como maior preocupação o serviço doméstico e uniformes limpos.

A caçulinha tinha namorado. Os dois mais velhos se firmavam profissionalmente. Estava quase na hora de “vestir o pijama”, como dizia o marido.

Mas a caçulinha engravidou. E não era do namorado. Custou a entender. Ainda se fosse uma adolescente com hormônios demais e juízo de menos, entenderia. No entanto era uma jovem mulher de 23 anos, criada no exemplo e educada com todas as informações. Viria o primeiro neto, de forma inesperada. Mas viria.

Pagaram as contas do hospital, compraram um berço. Adiaram projetos de viagem, abrir uma petiscaria, ter um pequeno sítio para criar galinhas e um carro de segunda mão para virem à cidade visitar os filhos. Dois anos depois, o pijama continuava pendurado. A filha, com seu salário de professora, empatava o que tinha e o que não tinha cuidando da criança. Passava os finais de semana tomando conta do menino para que ela colocasse em dia os assuntos da escola. Fazia mais serviço doméstico do que antes, apesar da ajuda da filha. Sabia que se seguiriam ainda anos inteiros onde seu velho papel de mãe teria que ser retomado, em beneficio de uma filha crescida e um neto em crescimento.

Os seus próprios projetos, ainda no fundo da gaveta, acenavam de vez em quando. Talvez daqui a dez anos, dizia ao marido. Em dez anos não teremos mais forças para tratar da criação, capinar, levantar as coisas sem ajuda, estrilava um “eu” interno que ensaiara muito para seus novos papéis. Fazer o quê? retrucava a razão. E tempo seguia em frente, enquanto o pijama dava plantão no cabide.

Tangará da Serra, 01/02/2004.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 05/08/2020
Reeditado em 16/04/2021
Código do texto: T7026662
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