A MENINA QUE MORAVA PERTO DO FAROL

Nem farol era: ruína abandonada na barra, onde em séculos idos os holandeses fortificaram defesas, na esperança de criar uma nação loira de olhos azuis. Um muro esboroado, o resto de uma fundação circular onde ainda sobrevivia uma escada de pedra até o terceiro degrau; feixes de mato brotando por toda fresta entre as pedras, uma moita de palmeiras à esquerda e, onipresente pelos lados, abaixo e á frente, o mar.

Passara por ali todos os dias de sua vida. Vira o mar à sua esquerda na ida e o ouvira murmurar à direita na volta. Três quilômetros a pé, na trilha de areia; dez minutos de bicicleta, quando suas economias de empregadinha permitiram-lhe juntar trezentos cruzeiros.

Nascera num desses ranchinhos de bambu e palha e crescera numa casinha de madeira que os esforços de seu pai ergueram a pouco e pouco. Tinha seu terreiro com dois pés de manga, as galinhas que ciscavam soltas, alvoroçando os besourinhos que vinham visitar as flores, um gato e um cão, uma cerca de sempre-vivas em torno de seu mundinho, um pai e uma mãe.

Vira o mar todos os dias e sabia que, em certos dias, não seria o mesmo marzão velho e preguiçoso de sempre. Que haveria ocasiões em que as cintilações do sol na água pareceriam sinalizar mensagens, que a espuma apareceria com todas suas bolhas e efemeridade numa nitidez de sonho.

Um desses dias fora quando se encaminhara para a igreja, no vestido branco da primeira comunhão. O milagre prometido durante a catequese – a transformação da hóstia em carne e do vinho em sangue – criava uma expectativa imatura de terror e esperança. Nesse dia ouvira de um canalha na rua: - A mulatinha aí tá quase no ponto. O sentido da frase mal penetrara na mente abismada pela esperança. Mas nada acontecera: nesse dia descobrira que sua fé não era suficiente para que a rodela de farinha seca tivesse gosto de nada a não ser papel.

Na volta, as luzinhas sobre as ondas pareciam convidar e zombar. Ficara horas na escada do farol, olhando o mar, até concluir que certas coisas só mesmo um padre poderia entender.

Quando passara por aquele caminho, na garupa da própria bicicleta, para um passeio no arrecife dos caranguejos, a translucidez das ondas lhe avisara que seria um daqueles dias. O passeio acabara no cartório, com uma barriga de três meses e um orgulhoso noivo ao lado.

Continuaram morando na casinha de madeira, acrescida de quartinhos para o novo casal e a prole. Quando enterrara o pai e depois a mãe, o azul do mar, de tão profundo, parecia refletir o céu noturno ainda a horas de distância no tempo.

Criou os próprios filhos e mais dois filhos alheios. Foi traída pelo marido e pela melhor amiga. Nessa fase, todos os dias eram dias de sentar na escadinha e olhar o mar. Sozinha, vivendo da aposentadoria e da ajuda dos filhos, olhava as ondas e via nelas a inconstância do mundo. Nada parecia valer a pena. Mas continuou, porque o destino das coisas vivas é continuar.

As sombras noturnas já desciam devagarinho sobre seus olhos quando, ao passar de novo por aquele caminho, vira o mar numa tonalidade de claro e alegre azul, simplesmente irresistível. Como se o céu de verão se tivesse liquefeito. Deixara-se ficar lá por horas. As ondas lhe contaram casos de sereias e castelos encantados, de lindos vestidos de baile e salões brancos e brilhantes, de coisas que nasciam e cresciam, da procura mútua dos machos e das fêmeas, de dias que fluem como um rio, da riqueza e da renovação da vida em multifacetadas formas.

Sorrira por dentro, como nunca até então na vida: o mundo todo era uma onda azul e ela era uma princesa de reinos marítimos, recebendo a reverência das ondas, perfiladinhas e comportadas como alunos no desfile. Algo na água, no sol e no ar falava de uma paz que o mundo não podia dar. Que coisa, pensou, até parece que voltei a ser menina na aula de catecismo.

E o mar estava tão azul e a conversa estava tão boa que, quando chegou em casa, quis continuar a prosa durante o sono. Então dormiu e não acordou mais.

Tangará da Serra, 12/11/03.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 05/08/2020
Reeditado em 16/04/2021
Código do texto: T7026660
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