Conhecendo a quarentena

Estou em prisão domiciliar. Resta-me o consolo de não precisar usar tornozeleiras. Mas, por outro lado, não consegui permissão para receber visita íntima. Alegação para o veto foi o perigo que poderia representar para mim. Não que tais visitas pudessem usar e abusar de um idoso que tem no prontuário – para usar o jargão policial – muitas passagens. Não por delegacias, mas, sim, por nosocômios, facultativos e farmácias, expressões que já dão pistas sobre a idade. Mas, por favor! Quanto ao nosocômio não se deixem trair pela sonoridade, tirando conclusões precipitadas. Afastem de imediato aquela imagem de manicômio. Talvez até não fosse distante dada a minha propensão a viver no mundo da lua, desligado dos problemas mundanos. Mas foram daqueles estabelecimentos que ora recebem o título de Instituto, casa de saúde ou, simplesmente, hospital, sem a frescura de nomes de santos todo afrancesados.

Então, voltando às visitas íntimas, privaram-me pela minha condição de Idoso. Com agravantes decorrentes de diabetes, hipertensão, cardiopatia. Felizmente, há pouco tempo, foi extraído de meu corpo um cálculo biliar. Se assim não fosse era capaz de constar também, como Nota de Rodapé, “possui pedra na vesícula”.

Só falta ter o cartaz na porta de meu apê: “Fechado para bundalelê*, filhos e netos”. Felizmente o escriba do cartaz foi gentil em registrar a acepção do termo: bagunça ou desordem.

Fiel cumpridor dos dispositivos legais fechei-me em copas. De bico calado, sem colocar a cara na porta, fiquei pensando. Mas não pensando como BBBianos, que pensam em voz alta. No início o silêncio só foi quebrado pelo barulho do leite que ferveu e derramou. No mais foi introspecção pura. Até quando vai essa quarentena?

Pronto! Na dúvida, a luz! Foi como se eu tivesse me agarrado a um rabo de cometa e saí pelo espaço sideral, viajando no tempo na ordem inversa da cronologia. Viagem ultrassônica através dessa incrível velocidade que o pensamento nos proporciona. E assim caí lá numa pequena cidade, tão distante que me desestimula tornar a visitá-la. Foi lá que me vi, entre confetes e serpentina, ao som de “O teu cabelo não nega, mulata. Porque és mulata na cor. Mas como a cor não pega, mulata. Mulata, eu quero o teu amor”.

Ah, que viagem! De olhos abertos, eu sonhei. Revivi o sonho daquela noite. Uma noite em que eu, com os olhos, empurrava os ponteiros para trás, para não chegar a meia-noite naquela terça-feira de Carnaval.

Sabia que aquele corpo que mantinha abraçado junto a mim estaria assim por pouco tempo. Até o momento de o pequeno conjunto musical dar os acordes finais junto com a batida da meia noite. Os pares se desmanchando no meio do salão, as mães com os agasalhos já nas mãos, os casais trocando olhares acumpliciados e que venha a Quaresma.

Foi assim que conheci o significado da quaresma como período de penitência, com sacrifícios e reflexões.

Mas naquela época eu podia contar em quatro passadas dos dedos das mãos quando o meu sacrifício terminaria e voltariam os bailes no modesto clube.

Eu vivia quarentenas com princípio e fim. No meio, devaneio. Hoje a minha quarentena já começou sem data marcada, no meio não há sonhos e seu final é uma incerteza. A manter-se firme na espera, o motivo maior é a própria vida.