Como aconteceu o desastre


     1. No seminário franciscano, onde cursei o ginasial, sofri o meu maior desastre literário. Semelhante ao que sofrera Vinicius de Moraes, narrado por Nelson Rodrigues no seu livro "Memórias - A menina sem estrela". O que me aconteceu, posso contar bem rapidinho. De certa maneira, é a constatação de que nem sempre o destino é malvado ou maldito.
     2. Vamos lá. Filiado ao Grêmio Literário do seminário, fui escalado, pelo frade, meu professor de Português, um iluminado, para escrever uma crônica ou coisa parecida, sobre São Boaventura (1221-1274), depois de São Francisco de Assis, o seráfico mais importante da Ordem dos Frades Menores - OFM. Boaventura tinha uma cultura exuberante e uma respeitada liderança. 
     3. Peguei da caneta, e, com o entusiasmo de um jovem seminarista, iniciei meu trabalho, fazendo as indispensáveis pesquisas, as primeiras de minha vida. Me foi dado um prazo para entregar a crônica. Pois, antes de ser levada ao plenário do Grêmio, teria que passar pelo frade, meu professor de Português, conhecedor profundo da língua de Camões.
     4. Fiz a entrega no dia combinado. Confiante no que escrevera, tinha certeza, não diria absoluta, de que meu trabalho seria bem recebido e aplaudido. Não foi, porém, o que aconteceu. O frade professor desclassificou minha crônica, fazendo, publicamente, severas críticas. Finalizou seu "parecer" com um indelicado e desalentador veredicto. Quase morri de vergonha.
     5. Felizmente, contei com a compreensão e a solidariedade de alguns colegas. Num generoso julgamento, disseram que meu trabalho não era perfeito, mas não era aquilo que o professor dissera ao condená-lo. Nunca perdoei meu ranzinza mestre. Nem quando ele, com todo o seu indiscutível valor cultural e religioso, virou bispo. Nunca beijei-lhe o anel episcopal, nas poucas vezes que o encontrei por aí. 
     6. Isso aconteceu, faz muitas décadas. Fosse hoje, teria lhe mandado um cartãozinho com este conselho do filósofo do momento, o professor Mario Sergio Cortella (sem acento): "Elogie em público, e corrija em particular. Um sábio orienta sem ofender,  e ensina sem humilhar". Que Deus o tenha em um bom lugar. Como pastor purpurado, nas dioceses que dirigiu, foi de um inestimável valor.
     7. Citei Nelson Rodrigues e Vinicius de Moraes no início desta crônica. O Anjo Pornográfico, no Capítulo 64, do seu livro "Memórias", narra o que ouvira do poeta como sofrera seu "maior desastre literário". O episódio, vale ser relembrado, porque não deixa de ser uma lição de vida; um exemplo de perseverança; aquela de desistir, jamais. 
     8. Nelson contou que ouvira do Poetinha o seguinte: que ele, Vinicius, ainda adolescente, entregara os originais do seu primeiro livro de versos ao escritor paraibano João Lyra Filho (1906-1988), para recolher do mestre uma opinião. Dias depois, a opinião: "Desista. Você não dá pra isso. Não é poeta, nunca será poeta". Diz Nelson, que Vinicius "saiu, dali, com vontade de morrer". 
     9. Completa o autor de "Meu destino é pecar", afirmando: "Por pouco, o João Lyra Filho não assassinava uma das mais formidáveis vocações da poesia brasileira."  Concordo, sem tirar nem pôr, com a posição do Anjo Pornográfico, apodo que lhe foi dado pelo exímio cronista Ruy Castro. 
     10. É evidente que não estou aqui querendo me comparar com o nosso Vina, autor de belos poemas e lindas canções com seus excelentes parceiros, Tom Jobim e  Antonio Pecci Filho, o Toquinho. Se o fizesse, estaria me declarando, sem pedir reservas, despudorosamente, como um dos maiores imbecis da face da Terra. Conheço o meu lugar.
     11. Quis, apenas, dizer que o "desastre literário" que sofri no seminário não me fez desistir de continuar escrevendo. Se, até hoje não consegui ser um bom cronista, pelo menos escrevo minhas crônicas procurando dizer o mínimo de bobagens.     
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 04/08/2020
Reeditado em 05/08/2020
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