[ anticrônica #1 ]

porque não posso oferecer o que tenho, por ser íntimo e demasiado pesado para tuas mãos.

oferecer o que tenho, seria também, oferecer, talvez, a única prova de mim — que sou minúsculo ante os homens e indefeso, bem sabes, ou melhor, bem me mostrara. e isso me parece, um ato de coragem. coragem para admitir-se indefeso. não fraco, mas indefeso. fraco me passa a sensação de quem não ama, e indefeso, de que ao menos tentei. e aqui, ignoro, me isento, d'uma explicação qualquer.

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uma das coisas do ponto de ônibus, que só agora percebo, porque as pessoas ali eram poucas, é um cartaz de um homem desaparecido.

num instante, quiçá automático, penso em dizer "que Deus o tenha", mas me interrompo, porque lido "desaparecido".

acredito que este automatismo se deve à violência do dia a dia, às mortes do dia a dia — muito antes da pandemia —, às coisas tantas que de acontecer no dia a dia, me acostumei.

me acostumei? não. acostumar, me lembra costume, que me lembra tradição; e a violência não é uma tradição; é antes a quebra de um dos Dez Mandamentos.

por isso, quiçá, melhor dizer: me habituei. por isso, quiçá, melhor pensar: nos habituamos. inda que este melhor, nada tenha de melhoria. mas o declínio, mas a queda.

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peço perdão; e torço para que aquele homem seja encontrado. porque sou humano o suficiente — e digo isso sem nenhuma arrogância — para entender a preocupação dos que esperam.

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há também a preocupação dos que amam. e penso se esta preocupação não seria a minha preocupação, que oculto, quando me refiro aos outros, e não diretamente, a mim.

pois nunca parei para pensar em qual seria a minha preocupação no amor.

porque, talvez, pensar, seria encontrar uma resposta, uma verdade. para o qual, eu não esteja — nunca? — preparado.

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vejo, também, que estou a utilizar muitos também, quiçá, talvez, porque, pois...

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mas se falo esta língua portuguesa — que aprendemos na escola e que nossos pais nos ensinaram — tenho de usá-la para dizer o que pretendo. inda que eu corra o risco de cair na repetição das palavras.

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aquele homem desaparecido, que num dos cartazes, sorria — ao menos quero pensar que sorria, caso em realidade não tenha —, tem a idade para ser meu pai — que nos aguarda em nossa casa...

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este meu pai que não pude abraçar quando quis, porque a pandemia, porque a pandemia, porque a pandemia, nos faz temer o toque e nos banhar de álcool em gel e nos adaptarmos às máscaras, para o bem de todos.

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temer o toque; para o bem de todos...

quis regressar para chorar em teus braços, pai.