UMA PROSA QUALQUER
UMA PROSA QUALQUER
Tem dia que acordo, geralmente bem cedo, para ouvir o primeiro noticiário da manhã no rádio, após minha alma ter feito, como de hábito, a sua peripécia astral, e a vontade de escrever vem-me, não em forma de verso, mas de prosa. Então, eu sei que, se não tiver algum afazer doméstico pra fazer, ou tenha que sair no início da manhã pra resolver algo no centro da cidade; coisa que, dificilmente agora me ocorre, não só porque já estou aposentado, mas também porque, com a chegada da pandemia, o povo tem que ser mais cuidadoso contra uma possível infecção do coronavírus, isolando-se e distanciando-se tanto quanto possa, no lar; máxime eu, que estou no início da melhor idade, por assim dizer, no limiar da fase carnal idosa; tomarei o café junto com minha esposa, descansarei um pouco e me sentarei diante do pc, pra fazer algo de que gosto muito: escrever! Não poesia, por agora, gênero de minha predileção, mas uma prosa qualquer.
A palavra é algo muito forte e predominante em mim. Algo de que preciso me nutrir assiduamente, pra me sentir bem interiormente. Lembro-me que, aos sete anos comecei a ler. Deveras um gosto e um hábito prematuro à idade pueril. Lia livros didáticos, literários, gibis e revistas de foto-novelas de minha mãe. E aos nove, li aos poucos, movido pela curiosidade, uma coleção sobre sexo de dois volumes, que meus pais a escondiam dentro do guarda-roupa deles, para que nós: eu, minha irmã e meu irmão caçula, não tivéssemos acesso a tal coleção, que estava enrolada num pano grosso e atada com vários nós; por tratar-se, segundo eles, de uma leitura para adultos, e estavam certos, mas eu a li, e foi assim, por gostar de ler, que, mesmo ainda criança, mas com a alma madura num corpo infantil, e com pendor à leitura e à escrita, sem ter noção de certas coisas, ou de coisas relevantes que só deveria saber na adolescência ou na fase adulta, que passei a saber e até a entender, acreditem, de modo precoce, sobre sexo e procriação humana, com apenas nove anos de idade.
De repente, comecei a falar, comentar coisas estranhas e sérias pra minha idade. Preocupados, meus pais desconfiaram de que havia algo errado, estranho comigo. Meu pai começou a me fazer perguntas, de onde eu tinha aprendido a comentar sobre coisas de sexo, e insistia me dizendo que não tinha sido na escola, porque justo na escola, com a idade que tinha, não haveria livros didáticos que ensinassem coisas reservadas aos adultos. Como não lhe dizia nada, com o corpo trêmulo e quase chorando, ele ameaçou me bater e me botar de castigo por alguns dias, cortando as brincadeiras que mais gostava, dentre as quais, jogar bola com os amiguinhos na rua onde morava ou no campinho perto de casa. Daí, temendo sofrer com a surra ou com o castigo, lhe revelei o que ele já desconfiava. Meu pai me advertiu severamente acerca do que fiz sem a sua permissão, que não ousasse em ler mais os dois livros, e ainda reclamou com minha mãe, por não me fiscalizar e ter facilitado o acesso à tal coleção. Mesmo assim, não apanhei, mas ele me puniu, e fiquei de castigo por alguns dias, apenas saindo de casa pra ir à escola. Além disso, tive que lhe prometer que não comentaria com ninguém, sobre o que havia lido.
Quando eu era criança, o único veículo de comunicação acessível às classes mais humildes não era a tv, era o rádio. Meu pai tinha dois rádios, e os ouvia todos os dias. Um, ficava em casa e o outro, em sua alfaiataria. Pelo visto, ele gostava muito de rádio, como gosta até hoje... visto que ainda está encarnado, com 93 anos; minha mãe é que já desencarnou há pouco mais de vinte anos. Em casa, ainda não tínhamos nem geladeira, nem tv. Minha mãe não gostava de rádio, ou pelo menos, não se importava em o ouvir regularmente, como meu pai, a não ser, alguma novela transmitida pelo rádio, como "O Direito de Nascer", por exemplo, que ela fazia questão de acompanhar; e eu, curioso por ouvir a palavra, contada pela novela radiofônica, ouvia junto com ela.
A novela tinha um conteúdo forte pra época. No enredo, Albertinho Limonta namorava Izabel Cristina, moça prendada, ainda virgem, que a engravidou antes de se casarem, causando um escândalo nas duas famílias, apressando assim, o casamento entre eles, antes da barriga dela crescer, até o momento do bebê nascer. Portanto, a novela abordava uma conduta inoportuna, imprópria aos padrões da sociedade de então. Minha mãe sabia que eu gostava de ler, pois lia as histórias de suas revistas de fotonovelas; por isso me deixava ouvir com ela a novela no rádio, mas me prevenia de que eu não devia falar pra meu pai, posto que, além dele não aprovar, reclamaria com ela, por agir de forma desrespeitosa, deixando que eu, uma criança, ouvisse certos assuntos que não me cabiam os ouvir. Na verdade, meu pai sempre foi severo em nos criar, embora se preocupasse em nos educar. Porém, acho que foi devido ao seu jeito implicante de ser, que logo nos primeiros anos da fase adulta, os filhos decidiram sair de casa, para cada um seguir o seu rumo de vida.
Pensando em melhorar as suas condições financeiras, meu pai decidiu montar uma pequena boutique, colocando algumas prateleiras no espaço disponível da alfaiataria. Com algumas economias guardadas, fez uma viagem a São Paulo e comprou as mercadorias. Durante a semana, ele as vendia na alfaiataria. E no sábado, as mercadorias eram vendidas na feira perto de casa, sobre uma barraca de madeira que ele mandou fazer, específica pra essa finalidade. Quando a variedade de roupas foram acabando, ele anunciou que estava próximo de fazer uma nova viagem a São Paulo, pois precisava renovar o estoque pra manter a boutique em atividade, demonstrando satisfação pelo sucesso do novo empreendimento. Também comunicou que, com o lucro, compraria por lá um produto de utilidade doméstica que ainda não tínhamos: uma geladeira. Até sua marca predileta ele já sabia. A melhor da época era frigidaire. De fato, com poucos dias após o seu retorno, pela tarde, o carro da transportadora chegava na porta de nossa casa, anunciando que tinha uma encomenda vinda de São Paulo, pra ser entregue naquele endereço. Em seguida, três homens puseram a grande e pesada geladeira encaixotada no meio da sala da casa. Quando meu pai chegou na boca da noite, alegrou-se ao ver o eletrodoméstico. Logo cuidou em desencaixotá-lo, e junto com minha mãe, colocou a linda frigidaire verde num dos cantos da única sala da humilde casa.
Antes dele comprar a frigidaire, sem nem a boutique ter sido montada, um seu compadre, vendo que não tínhamos tv, disse-lhe que traria pra nossa casa, uma tv de 14 polegadas usada, porque ele havia comprado uma nova de 20 polegadas, preto-e-branco, porque naquela época ainda não tinha tv colorida. Pra não ter que se desfazer dela de outra forma, como vendê-la, optou por a dar de presente à nossa família. Meu pai aceitou, mais pra não desagradar o seu gesto de bondade, do que o interesse pelo presente, que decerto, pensou ele, não devia estar em bom estado de conservação, pelo tempo demasiado de uso, e poderia gerar despesas com inúmeros consertos, resultando em gastos desnecessários num produto tão gasto. A verdade é que, além de não gostar de tv, não queria aceitar aquela tv usada ofertada pelo seu compadre. Mas como minha mãe e os filhos a queriam, ele acabou aceitando.
Exceto meu pai, era grande a vontade da família ter uma tv. Só o fato de não mais assistirmos pela televizinha, nos tranquilizava, além de ser mais uma opção de lazer inusitada, visto que, ter uma tv naquela época, mesmo em preto-e-branco, era como ter um cinema, uma sala de projeção em miniatura dentro da própria casa. Quando o compadre trouxe a tevezinha, ficamos alegres, salvo meu pai, que agiu com indiferença, contudo, o agradeceu, com o presente, pelo que se presumia, dado de boa vontade. Pelo aspecto surrado dela, meu pai logo percebeu que iria gastar com alguns consertos, pra mantê-la em bom funcionamento. Além da antena interna, instalou-se outra externa pra reforçar o sinal, pois não era nítido, de boa qualidade lá pelos idos de 50, 60...
E, como meu pai havia previsto, a primeira vez que a pequena tv foi ligada, não funcionou cem por cento. O som muito ruim, a imagem distorcida, e quando o sinal não saía do ar, o que era comum naqueles idos, ela mesma parava de funcionar repentinamente. Meu pai a levou pra consertar várias vezes. Ficávamos alegres porque a tv portátil funcionava um pouco melhor, mas poucos dias após, ela apresentava os mesmos problemas. além de aparecer outros. Daí, ele muito chateado com aquela situação de gastos em vão, nos disse que não a consertaria mais. Também não nos prometeu que iria comprar uma tv nova. Enfim, decepcionados com o presente dado pelo compadre, meus pais deduziram que ele foi mesquinho, desconsiderando-os, por ter doado um produto que ele sabia de antemão, que não mais prestava pra ser utilizado. Depois disso, da parte de minha mãe, não, mas de meu pai, a sua amizade, o seu vínculo de compadrio não foi mais o mesmo. Ele não ficou de mal com o compadre, mas quase isso, porque a relação entre os dois ficou bem restrita.
A frigidaire servia bem às necessidades da família. Mas faltava a tv, que meu pai não se interessava em comprar. Ele realmente não gostava de tv. Gostava mesmo era de rádio. Tanto que, se quiséssemos saber de algo, tinha que ser através do rádio, pois ele tinha um em casa e outro na alfaiataria. No rádio ele ouvia a resenha esportiva, o noticiário e os jogos: locais amadores e profissionais estaduais e nacionais. A rádio Globo era a sua preferida. Minha mãe ouvia as novelas radiofônicas. E os filhos ouviam algumas coisas que eles ouviam, e mais os programas musicais. Sem tv em casa, voltamos a assistir pela televizinha. Na verdade, minha mãe nunca desistiu, sempre esperançosa de ter uma tv em casa, e tinha que ser nova, porque usada, só dava prejuízo e decepção. Do mesmo jeito que a frigidaire chegou, a tv também ia chegar. Ela achava que, assim como meu pai trouxe a frigidaire de São Paulo, poderia igualmente trazer a tv. Afinal, estávamos esperando que ele, usando o bom senso, e mesmo não gostando de tv, mas que nos agradasse, nos beneficiando com essa interessante opção de lazer.
A nossa expectativa era grande, dele marcar a próxima viagem pra São Paulo. Seria a terceira, desde que ele montou a boutique. Por fim, anunciou a viagem. Precisava renovar o estoque com novas mercadorias. Esperávamos que ele nos dissesse, como fez com a frigidaire, que iria trazer uma tv nova de São Paulo. Mas ele não disse nada. Ficamos, claro, frustrados com o seu silêncio, mas bem que ele poderia nos surpreender. Uma semana depois, meu pai fez a viagem, voltou e não trouxe a tv. O que trouxe foram alguns presentes, como sempre os trazia, pra todos da família. Lembro-me que, pra mim, por exemplo, ele trouxe um radinho de pilha da marca Japan. Fiquei alegre, mas queria mesmo era a tv, que não veio.
Minha mãe não lhe disse nada, no tocante à sua má vontade em comprar o que tanto queríamos: uma tv; uma simples tv, que ele podia comprar, mas só não a comprou porque não gostava de assistir tv; só que ele devia entender, pensava ela, que ele não morava sozinho; que tinha uma família, que não se contentava em só ouvir rádio, como ele; que a tv seria também uma opção agradável de entretenimento. E ficava chateada pela conduta egoística de meu pai. Mas não lhe dizia nada, pra não gerar desentendimento entre eles, posto que meu pai tinha uma natureza temperamental e explosiva; e se as coisas não fossem do jeito que ele queria que fosse, se zangava, se alterava no tom, resmungava, não admitia que lhe descumprissem as ordens, os hábitos, os gostos; e a relação conjugal ficava por alguns dias conflituosa, desarmoniosa, alimentada por energias ruins, pois ele evitava falar com minha mãe e com os filhos; tamanho era o seu estado lastimável de aborrecimento.
Os meses foram passando. Ninguém mais falou em tv dentro de casa. A rotina de ouvirmos rádio continuou. Aliás, tv pra nós, era só na televizinha. Meu pai administrava bem a boutique. Não tinha curso superior de administração nem de economia. Mas entendia bem de como tocar um negócio, mesmo pequeno, modesto, tornando-o viável e lucrativo. E assim, ele, usando da prática inata, conciliava o ofício de alfaiate com as vendas das mercadorias da boutique. Minha mãe não era só dona de casa. Era também costureira. Tinha as suas clientes e fazia as camisas levadas pelos clientes de meu pai, que se ocupava em fazer os ternos, as calças e as bermudas de seus clientes. Portanto, ela também contribuía com as despesas da família. Sem falar pra meu pai, ela pensou em separar um pouco do que ganhava com as costuras, pra comprar, ela mesma, a tão sonhada tv. Não podia guardar o dinheiro em casa, porque meu pai, em algum momento, podia desconfiar, e lhe perguntar sobre a finalidade dela está guardando aquela quantia, como se tivesse poupando pra comprar ou pagar algo que não queria lhe dizer. Então, ela pensou em guardar o pouco que separava na casa de minha avó, mãe dela, que tinha sua casa e era nossa vizinha. Por motivos que não me cabe aqui explicar, até pra não alongar mais ainda essa prosa, meu pai não se dava com minha avó. Também, pelo seu jeito difícil de ser, não precisa de explicação. Mas houve sim um conflito entre genro e sogra. Com um ano, minha mãe contou o dinheiro guardado e achou que dava pra comprar a tv. Fez orçamento em várias lojas no centro da cidade, e acabou por comprar uma tv de 20 polegadas. Quando ela chegou em casa no carro da loja com a tv encaixotada, todos nós ficamos imensamente alegres; mesmo porque, pra nós, foi uma bela e precisa surpresa; e minha mãe foi logo nos dizendo: "meus filhos, não foi seu pai quem comprou essa linda tv, um sonho nosso que ele podia e não quis realizar; então a mãe de vocês, com algumas economias, após um ano, tirando algum dinheiro das costuras, consegue agora, tornar o nosso sonho, uma possível realidade.
Quando meu pai chegou meio-dia pra almoçar e viu a tv ligada e funcionando bem, num outro canto da sala da casa, a princípio, claro, ficou sem entender, como aquela tv estava alí, se não foi ele quem a comprou. Logo foi saber de minha mãe o que ocorreu. E ela lhe disse: "Não quis mais lhe incomodar, meu querido, insistindo na ideia de você comprar uma tv pra nossa casa. Como você comprou a geladeira, eu comprei agora a tv. Fui tirando aos poucos, dinheiro das costuras e dando a minha mãe pra guardar. Você não vai ficar aborrecido comigo, porque não lhe disse nada sobre o que planejei, não é?" Meu pai olhou pra minha mãe com ar de seriedade, porém dessa vez não se chateou. E até a elogiou, pelas economias que fez durante um ano, sem deixar de ajudar nas despesas da família, até o momento de tornar possível a compra da tão sonhada tv. Depois se justificou, dizendo que não gostava de tv, gostava de rádio. E preferiu comprar uma geladeira, porque tinha mais utilidade às necessidades da casa. Ademais, estava juntando dinheiro pra comprar o terreno da casa, que pertencia à sua tia, porque a construção ele já havia pago, com o débito todo quitado. Com os argumentos convincentes, algumas situações foram resolvidas e outras encaminhadas pra serem solucionadas no tempo oportuno.
Tudo parecia bem. Minha mãe envolta com os afazeres domésticos, costurando e cuidando dos filhos. Meu pai, ocupado na alfaiataria com as costuras e com a boutique. E nós, os filhos, indo pra escola estudar, fazendo os deveres de casa e curtindo os instantes de lazer. Um certo dia, meu pai acordou cedo, tomou café e foi pra alfaiataria. Lá chegando, teve uma desagradável surpresa: Das duas portas, uma estava aberta. A alfaiataria tinha sido arrombada durante a noite. As prateleiras estavam praticamente vazias de mercadorias. Meu pai custou a acreditar no que via. Logo prestou queixa na polícia, esperançoso de que o ladrão ou ladrões fossem achados. Naquele dia, decepcionado, contrariado, ele não teve nenhuma vontade, disposição pra trabalhar, não na boutique, que não tinha o que vender, mas adiantar o serviço das costuras, visando as entregar aos clientes no tempo combinado. Voltou pra casa e nos revelou a triste notícia, de ter chegado pra trabalhar e encontrado a alfaiataria arrombada.
Meu pai sempre foi conservador. Sempre gostou de cuidar do que lhe pertence. Realmente, não gostava de perder nada que fosse dele. Além de alfaiate, ele tinha o sonho de montar uma boutique, modesta que fosse, mas que lhe proporcionasse uma outra alternativa de renda. E justo quando ela estava sendo um negócio de sucesso, aconteceu aquele roubo repentino, mas premeditado por algum meliante que tencionava roubá-lo. Os dias os meses se passaram. Ele demorou de se conformar com a triste ocorrência. Ia pra alfaiataria, mas exercia o seu ofício sem vontade, sério, calado, se alimentava pouco, perdeu peso, posto que, intimamente só pensava nos bens materiais que perdeu pra algum meliante que vivia no submundo da vida marginal, bandida. Ele foi várias vezes na polícia, pra saber se haviam encontrado os marginais. E sempre voltava decepcionado, pois lhe diziam que não tinham nenhuma pista dos bandidos. Ele então, temeroso de ser roubado de novo, caso continuasse com a boutique, renovando o estoque, preferiu desistir, e voltar a ser só o que era: um alfaiate. Reuniu a família, e comunicou a sua decisão. Religioso católico, acostumado a orar, a fazer promessa, a pedir e agradecer a Deus pela ajuda obtida, meu pai dizia que Deus, os santos protetores, e a sua esposa, haveriam de continuar o ajudando a criar e a educar os seus filhos, segundo os valores de uma família unida, simples e modesta. Os anos se passaram. Meu pai, em seu ofício de alfaiate. Minha mãe, em seu ofício de costureira. E nós, os filhos, crescendo, e a família sobrevivendo honestamente.
Um certo dia, meu pai chegou em casa com uma boa notícia. Que um advogado estava em Itabuna, anunciando que havia desengavetado um processo em Brasília, na época do Presidente Ernesto Geisel, dando condições das chamadas profissões de artistas, como eram denominados os profissionais liberais como: alfaiates, barbeiros, sapateiros, marceneiros, etc, de obterem uma aposentadoria especial, caso tivessem contribuindo com o INPS, como era chamado o hoje INSS na época. Era um benefício de alguns salários mínimos, variando conforme o tempo de contribuição de cada um. De imediato, alguns profissionais reuniram a documentação, inclusive meu pai, que estava com sua contribuição atrasada, mas mesmo assim pôde ser incluído, embora quando começasse a receber o benefício, vinha descontado certo valor até quitar o que estava em atraso. O advogado recolheu toda a papelada e garantiu que assim que desse entrada, tudo estaria resolvido, e que todos pudessem esperar que a notícia da chegada dos benefícios não tardaria a acontecer, pois o Banco do Brasil avisaria no endereço de cada um dos beneficiados.
Após dois meses, meu pai recebeu do Banco o aviso de chegada do primeiro benefício. Surpreso, ele quase não acreditou. Pensou que demorasse mais, ou que o processo não ia dar em nada, mas ao mesmo tempo tinha alguma esperança que as coisas dessem certo. E realmente deu certo. Ficou alegre, feliz e junto com ele toda a família. Foi ao banco, fez o seu cadastro e quando se certificou daquela boa, numerosa quantidade de dinheiro que receberia todo mês, disse pra si mesmo que, se Deus até aquele momento estava lhe dando uma vida boa, honesta e digna, capaz de fazê-lo sobreviver com a família, dali pra frente, ela seria melhor, até porque, os serviços como alfaiate já não tinham a mesma produtividade; ele estava costurando um pouco menos, as pessoas começaram a comprar roupas prontas; mesmo assim, ainda ficaria algum tempo costurando, sem deixar bruscamente o ofício que lhe possibilitou sobreviver e sustentar sua família com a ajuda de sua esposa.
Quando se trabalha durante uma vida e se aposenta, geralmente as pessoas não querem exercer nenhuma atividade, pois optam em descansar, se distrair, viajar, sobretudo, se recebe uma boa aposentadoria. Com meu pai ocorreu o contrário. Mesmo bem aposentado, com um padrão melhor de vida, ainda trabalhou algum tempo como alfaiate; e aos poucos, ao longo dos anos, foi construindo o patrimônio dos seus sonhos. Como todos nós, ele tem as suas qualidades e defeitos. Tem uma compreensão de vida mais material do que espiritual. No entanto, crê em Deus e é devoto de Senhor do Bonfim. Não é uma pessoa fácil de se lidar. Interagindo com o próximo, se as coisas não funcionam como ele deseja, é capaz de ficar de mal com a pessoa e demora em ficar de bem. Com minha avó, por exemplo, ele voltou a falar com ela, mas foi preciso muitos anos pra isso ocorrer. Creiam: a frigidaire que ele comprou, mesmo comprando outros refrigeradores, não se desfez dela, que continua funcionando bem, há pelo menos 55 anos. Hoje ele lê jornais. Não gosta de usar celular. Usa o telefone fíxo em casa. Ouve rádio todos os dias. E tv, bem, de vez em quando, ele dá uma olhadinha no noticiário, e assiste o futebol, quando o time que ele torce, o Botafogo, joga. Quanto a mim, me utilizo dos vários veículos de comunicação: internet, tv, celular, rádio, (como meu pai, ouço rádio todos os dias), livros, revistas, bem como a escrita, que, pra mim, é uma forma construtiva de me comunicar, de lidar com a palavra literária pra me sentir bem intimamente. Bem, caros leitores, acho que essa prosa se alongou um pouco, o que não ocorre de praxe com uma simples crônica. Mas como acordei com vontade de escrever em prosa, lhes peço desculpa pela extensão do texto. E o concluo dizendo que, nem só de poesia vive quem escreve, mas de crônica ou outro gênero também...
Adilson Fontoura