O beija-flor na janela e o armário
O beija-flor, de tão hipnotizado pela imagem que avistara, chocou-se contra o vidro da janela fechada ao tentar aproximar-se.
Com cinco bicadas sutis, tentou chamar sua atenção, mas não conseguiu mais do que um rápido giro do seu pescoço que, desinteressado, retornou à sua enfadonha atividade. Ele então se livrou do lírio que trazia no bico e voou de volta ao jardim.
Ela, que cuidava da saúde mental de tantos desconhecidos, tentava cuidar da sua própria, limpando seu armário de tudo o que não lhe cabia mais. Como a primeira cartinha de amor que recebera ainda criança e que, apesar do gesto carinhoso, ela associava à pureza e à sinceridade, sentimentos que morreram junto com o primeiro amor e, nos quais ela não acreditava mais.
O beija-flor retorna, faz outra tentativa e, com quatro bicadas contra a janela, não despertou se-quer uma pausa na respiração para um breve silêncio. Deixou cair a flor de lis e lançou-se a uma alternativa.
De posse de um vestido branco com estampas florais, ela lembrou-se da traumática perda da virgindade com um rapaz orgulhoso de suas estatísticas e de quem ela, infelizmente, jamais se esqueceria. E se culpava por isso. Como podia convidar alguém como ele a penetrar-lhe e tornar-se uma soma em sua equação? Interpretou o amor com um jogo no qual deveria estar sempre no controle e compreendeu sua condição feminina no mundo em que vive.
Mais decidido, o beija-flor bica o vidro três vezes. Mas ela, absorta em pensamentos, abraçada a uma roupa transparente, só ouvia a lembrança. Ele, incrédulo com sua invisibilidade, descarta a tulipa e, resiliente, parte para mais uma tentativa.
A transparência da roupa a levara de volta ao relacionamento mais intenso que tivera. Com o homem que a surpreendia em cada fôlego, que não a via, a decifrava, que sabia que tudo o que se conquista corre o risco de ser perdido e, por isso, jardinava seu amor cotidianamente. Uma proposta de trabalho dilacerou seu coração como um triturador de lixo. Ouve duas batidas em sua janela e espanta o passarinho. O beija-flor, assustado, deixa cair a orquídea e foge.
Irritada encontra um vestido longo de mangas compridas e gola alta que ganhara de um homem pequeno que a diminuía e escondia todo o potencial que tinha para que ele pudesse sobressair. Ela rasga raivosamente a peça enquanto o insistente beija-flor trinca o vidro com a força de seu bico e salpica a janela de sangue. Ele repousa o crisântemo no parapeito e alça seu derradeiro voo.
Ela, finalmente, nota o estrago e resolve conferir. Depara-se com a flor deitada e descobre as demais no chão abaixo da sacada. Compreende o pássaro e chora por cada uma das vidas que deixou de viver presa a memórias de promessas úmidas e mofadas.