Carta sobre um barco ancorado
 
O cheiro apetitoso da comida
é um espaço de silêncio entre a fome e a saciedade.

     Quando tudo isso começou – não tínhamos noção da dimensão que tomaria – certamente Deus e a Lua foram os que mais se mantiveram tranquilos. Ele por ser conhecedor de todas as coisas (onisciente) e ela por ter sido testemunha de tudo ao longo de toda a História – quem muito viu, mais serenidade alcança. Iniciei, em meados de março, uma série de cartas temáticas que se tornaram, por força própria, um meio de chegar até as vidas que, naquele instante, de presentes se faziam distantes. Mas, igual ao que se dá com as brincadeiras das crianças que, a certa altura, cansam, assim acontece aos artistas, a certa hora a inspiração se dilui em silêncio, vazio e limite.

     Continuei a escrever, mas os que têm recebido e lido, perceberam que naveguei por outros mares, as intuições se lançaram para além do tal “novo normal”, como está sendo emoldurado esses tempos, ainda que curtos, longos, ainda que avançados, estão apenas por começar. Veio à mente um poeminha de Nicanor Parra, intitulado Cronos:

Em Santiago do Chile
Os dias são interminavelmente longos:
Várias eternidades num só dia.
Nos deslocamos em lombo de mula
Como os vendedores de charque:
Bocejamos. Voltamos a becejar.
No entanto as semanas são curtas
Os meses passam em disparada
Eosanosparecemvoar.

     Passados esses dias, essas semanas, esses meses – Oh, Deus!, haverei de dizer esses anos? –, hoje encontrei na Palavra uma nova luz. Translitero o texto, depois vou ao que senti: Pouco mais adiante viu Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João, que estavam na barca, consertando as redes, e logo os chamou. Eles deixaram seu pai na barca com os empregados e foram atrás dele (Mc 1, 19-20). A necessidade vital de consertar as redes, que descoberta maravilhosa. Eis um silêncio profundo escondido no olhar atento de Jesus, no hábil manuseio das ferramentas da parte dos irmãos pescadores, nos pensamentos que se dispersam durante o ofício, no sonoro ondejar do mar, talvez nem mais ouvido, resultado das suas eterna repetições. É tempo de reatar os nós que os dias consumidos em afazeres haviam desfeitos entre os tantos carretéis com que somos costurados. Sinto um grande cansaço pendurado no fio de minha voz, confessa Ana Cristina Cesar, num de seus inúmeros textos sem título.

     Não só as redes, o barco todo precisa dos tempos de reparos. Não sou eu que vou dizer de quantas tábuas é feita tua embarcação. Não sou que medirei o peso da ou das tuas âncoras. Longe de mim corrigir o leme de tuas direções, as velas e os ventos de tuas rotas. Sei apenas que é tempo de aproar para um conserto necessário. Deus Pai, com seu olhar humano de Filho, nos vê trabalhar. Vê o esforço e a delicadeza, vê a concentração e a vontade, lê os medos e as inquietações, respeita o tempo adequado e espero o tempo oportuno. Ele não lançaria um convite tão ousado – aos dois e, por suposto, a nós – se o trabalho não estivesse pronto para dar frutos. O conserto das redes, a restauração do barco, uma jornada que declina. Tudo isso se encarna como o tempo dos reencontros, do exercício da paciência, da descoberta daquilo que estava submerso nas agitações, do silêncio de um trabalho que só pode ser realizado dessa forma: sob a marca da quietude. Só é possível consertar as redes olhando para elas. Há quem está com as redes rotas nas mãos, olhando impaciente para o mar, não vendo a hora de voltar à vida de sempre. Ao invés de um barco ancorado em uma oportuna oficina, apenas o sono dos indiferentes, como que ansiosos por naufragarem – de novo?