Autora de si mesma?

A filha mais nova do presidente Jair Bolsonaro, Laura, caiu no teclado do "povo" e virou um dos assuntos mais comentados nas redes sociais. Por causa de uma foto com o pai. No Twitter, parou nos trending topics. Alguns dedos maliciosos teclaram: "essa vai ter que aturar o destino cruel de ser filha do Bozo!". Um professor de filosofia no Youtube zombou a ausência de expressão facial simpática da menina na fotografia. Outro chalaceiro teorizou: "o rosto manifesta a consciência do fardo. Ela é filha do Bozo!"

Se não me lembrasse de Machado de Assis, provável que não tratasse deste tema. Por si, a foto de Bolsonaro e sua filha não é interessante a ponto de virar crônica, tampouco os comentários a respeito. Mas serve como "gancho" para abordar sobre o escritor carioca e sobre um autor clássico de filosofia, que o leitor já saberá quem é no próximo parágrafo.

Em 16 de junho de 1895, Machado publicou a crônica "O autor de si mesmo", que até hoje é objeto de estudos acadêmicos sobre literatura e filosofia. Neste texto, o Bruxo do Cosme Velho usou do conceito "metafísica do amor", do filósofo alemão Arthur Schopenhauer, para comentar um caso de filicídio.

A notícia analisada por Machado: um casal maltratava o filho único de dois anos de idade. A crueldade chegou a tal ponto que os pais o puseram vivo num caixão e o abandonaram numa estrebaria, onde "passou três dias sem comer, nem beber, coberto de chagas, recebendo bicadas de galinha, até que veio a falecer".

A crônica machadiana, no entanto, não se concentra no crime em si, mas na história de amor (e tragédia) do casal. Leitor competente de Schopenhauer, Machado aplica a "metafísica do amor" e observa que o menino é "o autor de si mesmo", ou seja, ele é o responsável pela união romântica dos pais.

O autor de "Dom Casmurro" explica o conceito: "[...] dois namorados não se escolhem um ao outro pelas causas individuais que presumem, mas porque um ser, que só pode vir deles, os incita e conjuga".

Voltemos agora a Laura. A metafísica do amor poderia se aplicar ao presidente e à primeira-dama Michelle? Laura seria autora de si mesma? Considerando essa tese, teria ela escolhido o destino cruel de ser "filha do Bozo"? Ela, como uma ideia (platônica) ansiosa para "realizar-se em um fenômeno", incitou e conjugou os pais?

Segundo o filósofo de Dantzig, sim: "Essa avidez, essa impetuosidade, é justamente a paixão que os futuros pais sentem um pelo outro".

Se Schopenhauer visse a expressão pouco simpática da menina na foto, daria uma bronca na mesma: "não tens do que reclamar, menina! Tu, na forma de paixão, é quem ligaste esta figura com tua mãe! Tu, na tua ânsia de vir para este mundo, foi quem os uniu!"

Ela poderia responder: "eu não sabia que seria uma merda deixar de ser uma ideia e vir pra cá!"