LEVE COMO A LIBERDADE

@andreaagnus

O susto foi maior que a dor. Sentei-me sobre as pernas dobradas, olhei para meu braço esquerdo com uma ponta perfurando por baixo da pele. Depois vi, agarrado à mureta da qual eu tinha despencado, um garoto travesso às gargalhadas, sem se dar conta do que tinha acontecido. Ele gritava - Ganhei! Ganhei! Agora você paga a prenda! - Voltei a analisar o braço, um calafrio me tomou, desmaiei.

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Acordei com uma voz familiar. Falava que me levaria para a emergência enquanto tentavam contactar algum parente meu. Foi somente aí que percebi que estava com a cabeça apoiada no colo dela. “Logo ela”, pensei tomada de tanto êxtase, ao ponto de nem me importar mais com o membro quebrado.

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- Isadora, segure firme em minha mão. Você terá que ser uma garotinha muito corajosa. O doutor vai colocar seu bracinho no lugar, tá bem? - senti tanta confiança nela, na professora de minha matéria predileta, na mulher que me apresentou ao mundo fantástico da literatura, no meu primeiro amor, que ao escutar o estalo do meu osso voltando ao lugar, apaguei e retornei com o privilégio de morrer e ressuscitar em seus braços.

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No dia seguinte, minha mãe foi comigo à escola para agradecer à professora Débora por ter cuidado de mim. Minha heroína particular, inventariante de meus maiores segredos sem o saber, tomou-me pela mão. Sorri. Apoiou meu braço, envolto em gesso, sobre a mesa na qual ela corrigia nossas tarefas de classe e me presenteou com um autógrafo.

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Quando retiraram aquela atadura firme que me imobilizou por três meses, senti aquele membro tão leve quanto a minha alma. Exatamente naquele dia, entendi o que eu sentia pela minha professora de infância. Vivenciei a experiência da insustentável leveza de ser quem eu era, de me assumir diferente. Libertei-me.

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Com apenas doze anos, arranquei de mim tudo o que me entravava, junto com gesso foi embora a culpa por amá-la. Vinte e seis anos se passaram e ainda consigo ver a assinatura dela que um dia fluiu do cálcio para a pele, escorrendo pelas veias até se tatuar em meu coração.

Andréa Agnus
Enviado por Andréa Agnus em 27/07/2020
Reeditado em 28/07/2020
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