Filosofia de vó
É impressionante. A gente cresce, muda a dentição, apreende o alfabeto, as quatro operações elementares da imaginação, a lidar com burocracias, vai para universidade, volta falando difícil, alguns de nós até se casam, fabricam família povoada, constroem prédios altíssimos, derrubam árvores com uma só machadada, mas, para nossas avós, somos eternamente "netinho''. Seu netinho.
Não lembro a vez em que ouvi da boca de minha vó meu nome oficial, o catalogado em registro de batismo. Eu era sempre seu "netinho", imaculado, fastioso, magérrimo, ainda que eu soubesse que todo o louvor que vovó me devotava era suspeito. Nunca, porém, o questionei. Se não se deve suspeitar de amor de mãe, imagina do de vó? Ambos são parecidíssimos, tendendo ao empático técnico em termos de grandeza.
Sempre morei com mãe, mas vivi mais com vó. Aprendi em casa de mãe as regras do lar, os cumprimentos de praxe despendidos no trato social, a educação indispensável ao convívio com os bípedes, a respeitar os semáforos etc. e tal. A casa de mãe é minha teoria; a de vó foi sempre minha prática. Lá descobri muitas grandezas que, na casa de mãe, eram-me invisíveis. Vovó me ensinou a duvidar da meteorologia, a apanhar sereno sem gripar, a subir em árvore, a assoar o nariz, a acender fogueira e até a rezar, prática que deliberadamente abandonei por inaptidão.
Desde menino, aliás, desde ''netinho", apreendi a apreciar a filosofia de vó, apesar de compreendê-la parcamente, que filosofia de vó é complicada demais. Lembro-me de uma certa vez em que vó estava vendo o programa da Hebe Camargo, a excêntrica, no SBT, —vovó, assim como a maioria de nossas avós, curtia muito a Hebe —e me chamou para ver junto. Vovó me chamou para assistir ao programa da Hebe, e naquele dia descobri que, segundo vovó, a Hebe era "Uma moça que anda em cima do brilho".
O programa acabou, e vovó me pôs para dormir. Mas eu não dormi logo assim não. Fiquei preso na filosofia de vovó. Foi preciso muitas tentativas frustradas até eu conseguir me desviar da imagem que vovó tinha fabricado em minha imaginação. Boa parte da noite testei insone, até que consegui aproximar a figura metafórica da excêntrica Hebe à do sol das 5h. "O sol também anda em cima do brilho.", pensei contente, acreditando desvendar o enigma filosófico de vovó.
Fui à casa de vovó mais algumas vezes, sempre à vista dela muito magro e fastioso; ela me engordava um pouco, curava meu fastio com algumas rezas, ao fim eu dava mostras de zanga com todas aquelas benzas e vovó me acalmava, dizendo, na mais suave das vozes, que não me arreliasse, que logo em breve ela me levaria, após me perfumar todo, me levaria para ver o circo. A sentença era certeira: vó conhecia minhas fraquezas, minha premente necessidade de fuga, meu eu amalucado e, por vezes, irascível. Vovó tinha uma filosofia complicada, eu complexava ainda mais.
Depois de um tempo vovó morreu, e eu fiquei sem saber se tinha acertado a interpretação da metáfora de vó; mais tarde foi a vez de Hebe, e assim caminha a humanidade. Até quando? Vó não me disse.