A BODEGA AZUL
06/2011
Quando cruzei por ela, uma canção muito romântica dos anos 60 rolava no som do meu carro.
Alheio à paisagem da fria tarde de domingo, eu ruminava algumas passagens dos meus então, 17 anos, quando a dita canção - tema da novela Beto Rockfeler - era o maior sucesso.
A primeira namorada, as noitadas de sábados, a doce vivência de uma época em que a gente nem se dá conta da imensa felicidade que vive.
De repente ela ! A bodega azul.
Ali à minha frente com aqueles "olhares de janelas" como que chorando a saudade de seus recheios, o calor das vivências, o burburinho de outras épocas.
Parei, e feito um maluco, fui mentalizando as memórias daquele endereço que tão somente conheci de passagem por ali umas tantas vezes:
Ah! Velho casarão da rua da estação...
Confesso ter-lhe conhecido em seus melhores dias.
Havia um tempo em que uma perene alegria reinava em seus compartimentos.
Uma sanfona rasgava a quietude da rua em acordes ora animados,ora dolentes, e boêmios, feito lobos do calçamento , destravavam nas gargantas os uivos de suas desilusões amorosas, de seus fracos desempenhos.
Alheias à constância de tamanha balbúrdia, presenças femininas floresciam pelos bancos da varanda agora em desalinho.
[ Eram rosas de abril em compasso de espera de seus " beija flores " ]
Agora, acabrunhada na tarde gelada deste domingo, entrega-se aos saudosismos e eu...Aprisiono-lhe num retrato.
Na busca de um ângulo que lhe enquadre por inteiro,mentalmente vou invadindo tuas portas, recriando teus cenários.
Então...
A mesma fileira empoeirada de garrafas em prateleiras rústicas, a estufa de salgadinhos ladeada de temperos e molhos de malagueta, xícaras numa infusão de água fervente, sobras de bebidas nos copos ao longo do balcão...
Odor de cachaça e frituras,temperando o ar. Presas ao expositor de doces, piadinhas de gosto duvidoso dividindo espaço com lembretes do gênero: "Fiado só amanhã" .
O misto de entusiasmo e cansaço na expressão do atendente.O pano de louça “ensebado” sobre o ombro como se fora uma echarpe, olhar apreensivo percorrendo em divagações as pedras da calçada, cabeça alheia ao burburinho embaçado na fumaça de cigarros.
Prossigo percorrendo os bancos de madeira maciça - vazios agora - daquelas presenças vindas das colônias de lavradores .Rudes nas aparências.Dóceis quando diziam de coisas da terra.
Procuro por aquêle velhinho,tão solitário e anônimo quanto a cadeira de palha em que sentava-se. O etéreo insinua-me, e eu capto a insinuação: cadeira e ançião, estão agora em dimensões que desconheço.
Busco-lhe as vozes, canções, odores etílicos pelo compartimento e percebo-me envolto em teias de aranha.
Tudo tão quieto, escuro e silencioso.
Ratazanas e aranhas firmaram um pacto para não morrer de solidão.
Só então me dou conta destes ciclos que se completam, das fases que determinam o belo, o vigoroso...
O tempo é um senhor implacável .Contorná-lo com viço é tarefa que muito poucos conseguem.
De consolo restam os arquivos da memória,onde ainda é possível permitir-se delinear nas melhores cores, estes velhos retratos opacos .
Fecho -lhe as portas azuis, quase escorregando nos degraus da escada . A batida da porta do carro,num ruído seco,desperta-me do devaneio.
Na cidadezinha encolhida de frio,uma carroça vai cerzindo a rua semi deserta.Dentro dela, uma familia, com ares festivos ,retorna de algum passeio. Alguém carrega numa espécie de abraço , uma robusta abóbora.
[Agradinhos da casa dos compadres, reflito com meus botões ]
Os cavalos puxam com entusiasmo a carroça vermelha e verde como se estivessem a caminho dos jardins do Éden.
Contornam numa cadência de quem está feliz, a curva do posto de combustíveis, onde bandeiras promocionais abanam-se multicores ao vento gelado de junho.
Também eu, como que seguindo o destino da carroça, dou a partida em meu carro.
Pelo espelho retrovisor a bodega azul me espreita , enquanto rumino lembranças e pensamentos à caminho de casa.
Salvatore Adamo, continua a dar-me o tom ao final de domingo (mais um!) temperado de frio,vento e nostalgia.
Uma doce nostalgia.
https://www.youtube.com/watch?v=KHr98A3gwMA
06/2011
Quando cruzei por ela, uma canção muito romântica dos anos 60 rolava no som do meu carro.
Alheio à paisagem da fria tarde de domingo, eu ruminava algumas passagens dos meus então, 17 anos, quando a dita canção - tema da novela Beto Rockfeler - era o maior sucesso.
A primeira namorada, as noitadas de sábados, a doce vivência de uma época em que a gente nem se dá conta da imensa felicidade que vive.
De repente ela ! A bodega azul.
Ali à minha frente com aqueles "olhares de janelas" como que chorando a saudade de seus recheios, o calor das vivências, o burburinho de outras épocas.
Parei, e feito um maluco, fui mentalizando as memórias daquele endereço que tão somente conheci de passagem por ali umas tantas vezes:
Ah! Velho casarão da rua da estação...
Confesso ter-lhe conhecido em seus melhores dias.
Havia um tempo em que uma perene alegria reinava em seus compartimentos.
Uma sanfona rasgava a quietude da rua em acordes ora animados,ora dolentes, e boêmios, feito lobos do calçamento , destravavam nas gargantas os uivos de suas desilusões amorosas, de seus fracos desempenhos.
Alheias à constância de tamanha balbúrdia, presenças femininas floresciam pelos bancos da varanda agora em desalinho.
[ Eram rosas de abril em compasso de espera de seus " beija flores " ]
Agora, acabrunhada na tarde gelada deste domingo, entrega-se aos saudosismos e eu...Aprisiono-lhe num retrato.
Na busca de um ângulo que lhe enquadre por inteiro,mentalmente vou invadindo tuas portas, recriando teus cenários.
Então...
A mesma fileira empoeirada de garrafas em prateleiras rústicas, a estufa de salgadinhos ladeada de temperos e molhos de malagueta, xícaras numa infusão de água fervente, sobras de bebidas nos copos ao longo do balcão...
Odor de cachaça e frituras,temperando o ar. Presas ao expositor de doces, piadinhas de gosto duvidoso dividindo espaço com lembretes do gênero: "Fiado só amanhã" .
O misto de entusiasmo e cansaço na expressão do atendente.O pano de louça “ensebado” sobre o ombro como se fora uma echarpe, olhar apreensivo percorrendo em divagações as pedras da calçada, cabeça alheia ao burburinho embaçado na fumaça de cigarros.
Prossigo percorrendo os bancos de madeira maciça - vazios agora - daquelas presenças vindas das colônias de lavradores .Rudes nas aparências.Dóceis quando diziam de coisas da terra.
Procuro por aquêle velhinho,tão solitário e anônimo quanto a cadeira de palha em que sentava-se. O etéreo insinua-me, e eu capto a insinuação: cadeira e ançião, estão agora em dimensões que desconheço.
Busco-lhe as vozes, canções, odores etílicos pelo compartimento e percebo-me envolto em teias de aranha.
Tudo tão quieto, escuro e silencioso.
Ratazanas e aranhas firmaram um pacto para não morrer de solidão.
Só então me dou conta destes ciclos que se completam, das fases que determinam o belo, o vigoroso...
O tempo é um senhor implacável .Contorná-lo com viço é tarefa que muito poucos conseguem.
De consolo restam os arquivos da memória,onde ainda é possível permitir-se delinear nas melhores cores, estes velhos retratos opacos .
Fecho -lhe as portas azuis, quase escorregando nos degraus da escada . A batida da porta do carro,num ruído seco,desperta-me do devaneio.
Na cidadezinha encolhida de frio,uma carroça vai cerzindo a rua semi deserta.Dentro dela, uma familia, com ares festivos ,retorna de algum passeio. Alguém carrega numa espécie de abraço , uma robusta abóbora.
[Agradinhos da casa dos compadres, reflito com meus botões ]
Os cavalos puxam com entusiasmo a carroça vermelha e verde como se estivessem a caminho dos jardins do Éden.
Contornam numa cadência de quem está feliz, a curva do posto de combustíveis, onde bandeiras promocionais abanam-se multicores ao vento gelado de junho.
Também eu, como que seguindo o destino da carroça, dou a partida em meu carro.
Pelo espelho retrovisor a bodega azul me espreita , enquanto rumino lembranças e pensamentos à caminho de casa.
Salvatore Adamo, continua a dar-me o tom ao final de domingo (mais um!) temperado de frio,vento e nostalgia.
Uma doce nostalgia.
https://www.youtube.com/watch?v=KHr98A3gwMA