Passou
Meu dia passou, nem me dei conta. Passei muito tempo frente ao espelho. Um fio de cabelo tirou o meu juízo, não queria ficar sentado em seu lugar, depois uma curva acentuada bem aqui.
Não, você não consegue enxergar, somente eu. Ninguém enxerga nada em mim como devia ver.
Passou, o dia, como se ele fosse uma bolha de sabão, e eu querendo ainda uma lição de como ter fôlego para não deixá-lo ir tão depressa. Eu não tenho pressa, para que ficar sem fôlego quando a certeza de ser passado já seja uma realidade?
Não tive pressa, amancei o tempo frente ao espelho, o dia passou, não aprendi o que tanto era esperado.
Agora não sei se cato o feijão, se fico na janela ou se atravesso a rua até o outro lado.
Tenho certa dificuldade em tomar decisões e, assim, tão na pressa, tudo fica ainda mais turvo, desalinhado, uma dor de barriga indo e voltando, um suor na sola dos pés desarranjado, um desalento tão angustiante ao ponto de nascer um sorriso tímido no canto da boca acompanhado da vontade de roer as unhas.
Se ao menos eu soubesse passar fome, não tivesse esse desejo de incerteza tão presente em mim.
Tão se tornou uma palavra fútil, quase que não representa nada em mim.
É que gosto da pausa dramática, do exagero da encenação de estar vivo.
Tão melancólico tudo isso e uma fome de verdade me faz mastigar o passado no céu da boca estrelado. Passou, o tempo. Não sei se no tempo perfeito assim. Sinto um certo desequilíbrio no meu pensamento.
E se eu trocasse tão por talvez? Talvez se encaixasse melhor no que sou.
Ai, esse fio e essa curva estão me tirando do sério. Não tenho espelho, mas consigo enxergar pela minha vontade.
Eu tenho vontade. Talvez não saiba expressar como deveria, mas tenho. Ela nasce aqui, porém, morre logo adiante.
Queria atravessar a rua, mas não sei. O tempo já é passado, a minha vontade, talvez.
É nisso que dá não ter aprendido a empinar pipas, soltar a linha para depois recolher. Por isso fico a olhar a vida pela janela. O que enxergo se enquadra nessa moldura, nada mais. Nada mais que isso. A paisagem se limita, o cheiro da vida, a estrada, tudo que vai ali para o infinito da estrada. Não sei, nunca me atrevi a ir além.
Só me atrevo a ver; enxergar, jamais. Faço o mesmo com ouvir e escutar. Mas, para encurtar a história, a gente se apega a detalhes tão efêmeros que o sol se põe tantas vezes e nunca nos opomos da rotina de acordar e dormir.
Acabei de engoli o cuspe sem querer. Mas, para que querer se estou tão emoldurado aqui, nesse tempo já passado? Pensar dói, uma inquietação doentia afrontada no suor escorrido na palma da mão e essas linhas que ninguém nunca se atreveu a ler. Talvez a história nelas escrita seja triste demais.
Meu dia passou, tão rápido, nem pude curti-lo como tinha planejado. Eu o queria na ponta da língua e ele nas correções. Tinha até o desejo de escrever uma carta, mas não tinha para quem nem o que dizer. Falar de um fio de cabelo? De uma curva assentada no meu rosto? Do meu dia finado? Eu não, não são coisas tão importantes para alguém querer saber. As pessoas já têm problemas demais para serem inportunadas com coisas alheias. Elas não querem mais ser inportunadas com as besteiras dos outros.
Achei melhor decorar um poema, mas fiquei engasgado com algumas palavras, não desciam assim tão facilmente. Há palavras assim, são como cortar cebolas ou mastigar alho sem querer. Têm uma certa acidez que embrulha o estômago, além dos encaixes. Melhor fazer vista grossa ou engoli-las sem mastigar.
Não caibo nessas regras, sou estupendamente espansivo para ser podado, embora essa rua fique instigando em mim o desejo de atravessá-la e ir descobrir ao outro lado de lá, mas a falta de coragem de mexer com o desconhecido finca ainda mais meus pés aqui. Melhor terminar de catar o feijão enquanto dá tempo. Daqui a pouco já é passado, o que eu disse é esquecido, além de um, terão mais fios desobedientes e as curvas, nossa, tão presentes na minha face. Por isso meu espelho é essa imagem que já é passado desde ontem.
Sinto solidão em não ter nascido lua nova perene. Como todo mundo, minha vida míngua e eu odeio catar feijão. Espere, se eu molhar meu dedo com minha saliva e passar no cabelo, esse fio para de me importunar, mas a curva, ela é a presença do tempo passando em mim. Não sai, não me larga, fica aqui como um marcador de tempo passado.
Passou, o dia, eu nem vi.
Marcus Vinicius