Eu era a inocência
Saudade de mim, do tempo em que eu roía as unhas, descascava as feridas, tirava a sujeira do nariz e ficava gastando o tempo brincando de fazer bolinha.
Saudade de fazer bolinhas de cuspe e de mascar a goma até não ter mais gosto, amargar na boca e ter vontade de engolir.
Saudade do tempo em que eu engolia a goma de mascar e tinha de tomar uma colher de óleo de coco para não ficar grudada nos pulmões.
Saudade dos dedos de calos causados pelos calçados novos. A gente passava a noite andando e voltava descalço, com os sapatos nas mãos.
Saudade desse eu sem medo, sem tensões, que achava que lá em cima, no céu, morava um velhinho barbudo e uma falange de anjos, e debaixo da terra ficava o inferno, governado pelo demônio com chifres enormes, rabo, uma boca grande, a língua para fora, um monte de caldeiras queimando e todos de lá suando muito, sendo castigados.
Eu era a inocência. Residia na falta de maldade, vizinho a um raio de bondade ornado de esperança. Não sabia que a vida era dura e que o ser humano tinha ódio dentro de si. Desenhava todos na palma de minha mão como se fossem sol sorrindo, sem excesso, sem esquentar demais.
Saudade da linha imaginária que me separava do real e da minha magnífica irrealidade.
Depois eu me lembro de apagar a vela dos meus onze anos de idade e um mundo novo se abrir sobre mim. Eu não era mais tão ingênuo, não roía as unhas, muito menos descascava as feridas de mim.
A vida era uma cortina arrancada dos meus olhos, eu não sabia a cor do céu, muito menos diferenciar o inferno debaixo da terra da falta de encantamento que passei a enxergar.
Meus amigos se foram, os pelos apareceram e eu desconhecia a imagem refletida no espelho do meu quarto.
Não tenho mais saco, eu me cansei da vida e ela me esqueceu jogado dentro de mim, sem o direito de escolha.
Observei a leveza do beija-flor e a ousadia das andorinhas. Passei a escrever o livro da minha existência nas folhas ovalhas pelos pingas de lágrimas do que ia me acontecendo. Peguei o lápis da maturidade e a tinta do meu sofrimento e, aos poucos, rabisquei o que passei a ser.
Eu sou saudade, tenho saudade, sinto saudade daquele menino que acreditava nas bolhas de sabão, nos segredos trocados pelos amigos e nos sonhos que a gente guardava dentro das cascas dos ovos estralados pelas nossas mães.
Agora tento colocar esse botão dentro da casa e meus dedos não me obedecem. Estão gastos, entregues à ferrugem do tempo sem perdão. Por isso a saudade de mim...
Tenho saudades de mim, do tempo esquecido, dos pesadelos e malassombros, das nossas brincadeiras de esconde-esconde e a gente buscando nos encontrar.
Saudade dos meus esquecimentos. A gente brigava, ficava de mal, dormia e tudo era esquecido.
Agora grande, as coisas se acumulam, a gente não esquece e adoecemos.
Saudade de mim, de quem me esqueceu aqui, prometeu que viria me buscar e nunca mais, nunca mais apareceu. Veja, chegou a borboleta, preciso dar atenção a ela, até mais.
Marcus Vinicius