MORO...

     ...defronte a um pessegueiro distante uns cinco metros da janela do meu quarto. Plantado em terreno vizinho, separa-nos o muro onde anda (ou andava) Godofredo, o lagartixa.
     Todo dia eu o observo; e ele, a mim. Já estava no terreno, quando vim residir ao lado. O pessegueiro é, portanto, por antiguidade de posto, meu "superior hierárquico", embora sua modéstia e despretensão não faça coro com o meu discernimento.  
     Deus fê-lo assim: formas simples, sem rebuscados. Porém, mãos e cérebros desencaminhados resolveram que algumas vezes tinham que decepá-las e torná-las mais desajeitadas... Apesar disto, o nobre personagem vai tocando os dias, sem reclamos.
     Nele costumam pousar pequenos pássaros que despejam em seus galhos e ramos as alegrias despreocupadas próprias dos voantezinhos, dando-lhe muita  alegria e vontade de viver.
     Discretíssimo, não deixa transparecer com facilidade suas reações ou emoções (como agora: sorriu para mim, só pela menção feita à sua discreção). 
     Hoje, nele pousou um bem-te-vi, tal qual acontecera há exatos três meses, numa sexta-feira 24.
     Diferentemente do outro, este bem-te-vi pousou e ficou quieto, só movendo a cabeça. Ao notar que eu o espiava, tratou de camuflar-se entre as folhas. Escondi-me também, esperando que ele se movimentasse e cantasse o canto costumeiro; ou piasse um pio longo, como fizera o outro. Nada! Continuou camuflado.
    Distrai-me um pouco, desviei a atenção por algum motivo sem importância. Quando voltei à espionagem o pássaro já havia desaparecido. 
    Nem sempre as coisas acontecem como imaginamos possam acontecer. 
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     Hoje completam-se três meses...
     (...)
    Outono ainda, a manhã daquela sexta-feira de abril estava clara; não de céu azul e limpo, mas de cúmulos "assorvetados" - ou melhor: pareciam formações espumosas de creme chantilly, gorduchonas, mas esparsas, sem ensombrearem os clarões do Sol, então andando por volta das dez horas.
     Naquele momento a rua já deveria estar ruidosa,  veículos e gente transitando. No entanto, havia estranho silêncio - enquanto o bem-te-vi esmerava-se limpando as penas, correndo o bico acima e abaixo delas, submetendo ráculas, barbas e bárbulas a uma faxina rigorosa, de vez em quando interrompida para ele arrepiar-se e sacudir-se vigorosamente livrando-se de coisas que por certo o incomodavam.
   " - Aí, moleque! Livrando-se da fuligem chinesa, hem?... Sem máscara!" - dirigi esta graçola boboca, em voz quase inaudível, ao pássaro que se higienizava.
    Invejei sua condição: a de não ser um humano... Invejei sua liberdade; caí na realidade de tantos pássaros engaiolados... Coitadinhos! 
   Sempre de orelha em pé, ora também riscando o olho para ver o que mais faria o caprichoso pássaro com o seu trajo (e meio caprichoso também que sou com os meus), dispus-me a dobrar camisas, bermudas e calças recém passadas por mim, não por imposição do momento, de quarentena a que todos nós estamos sujeitos, mas, por entender que os homens podem e devem auxiliar as esposas nas pequenas tarefas domésticas...
    Estava assim a movimentar-me quando o bem-te-vi emitiu um pio longo e alto. Imaginei que em seguida iria expressar-se no canto próprio dos bem-te-vis. Não o fez. Continuei na labuta; a orelha, em pé.
   Tardou em torno de meio minuto, e aconteceu outro pio; longo, alto como o primeiro, sem acompanhamento do canto costumeiro.
   No instante estranhamente silencioso da manhã senti também uma sensação estranha: " - Parece um agouro!"  
   Minha lembrança levou-me ao ano de 1954, agosto, 24, em que numa manhã clara, silenciosa, sem canto de pássaros, sem ruído de automóvel, de trem, de pessoas andando e conversando na avenida da pequena cidade, eu, adolescente de quinze anos, da janela do cartório onde trabalhava ouvi, do rádio de uma casa vizinha, a  edição extraordinária do "Repórter Esso": um tiro fatal havia sido disparado.
  ...Agora, aqueles dois pios...
  Fui à janela. 
  Logo o pássaro voou, rápido, desaparecendo.
  Percebi alguma coisa que se moveu na calçada escurecida por lodos muito antigos: lá estava, como alguém a me olhar de viés, por cima do ombro, com olho impressionantemente humano, a ponto de eu "ver" nele a esclerótica... - lá estava Godofredo, o lagartixa! vestido numa roupagem nova, escura (direi preta), momentaneamente paralisado por ter sido surpreendido por mim, que sempre o vira em côr rajada de amarelo e verde...    
     Ao chamá-lo, saiu dali correndo, ligeiro.
     (...)
     Aqueles dois pios me pareceram agouro.
     Pouco depois deles fiquei sabendo que uma segunda facada havia sido desferida.
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     No início do inverno, o muro foi pintado de branco.
     Desde aquela manhã de outono (sexta-feira, abril, 24) nunca mais vi Godofredo, o lagartixa.
 
      
                                     ----o))O((o----