Aço
Os olhos de Marília eram puro Aço.
E ela cobriu os lábios de vermelho e acendeu todas as luzes da casa.
- Acho que você vai morrer incompleto. E espero que morra mesmo. – Ela disse.
- Provavelmente você está certa também a respeito disso. – Repliquei.
- Engraçado você me dar razão agora. Mas antes tarde do que nunca.
Marília abriu as cortinas e olhou pela janela.
- Parou de chover. – Concluiu.
- Eu não esperava que fosse chover pra sempre.
Marília crispou os lábios e botou a mochila nas costas.
- Não perca seu tempo escrevendo sobre mim como se eu fosse só mais uma das suas putas.
- Tudo bem.
- Eu costumava achar que todas as pessoas mereciam encontrar o amor alguma vez na vida... Mas acho que você não saberia o que fazer, mesmo que encontrasse.
- Talvez por isso eu não procure mais.
- Você fica falando isso, mas a verdade é que você é covarde demais pra se abrir para quem quer que seja.
- E você é extremamente gentil com as palavras.
Me levantei da cadeira onde estava sentado e fui até a cozinha.
Marília me seguiu batendo os pés firmes no chão.
- Odeio seu cinismo. Simplesmente odeio.
- E eu estou cansado.
- De mim?
- De toda essa merda.
- Está certo.
Marília virou as costas e me deixou sozinho na cozinha.
- Vou me manter longe de você e das coisas que você escreve – Ela disse, por fim. Antes de desaparecer no corredor.
Abri a geladeira e tirei uma cerveja.
Tomei um gole, mas parecia que eu estava bebendo vinagre.
Deixei o copo sobre a mesa da sala e abri o computador.
Passei um bom tempo encarando a tela em branco antes das palavras começarem a fluir.
“Onde está o amor? Enfim. Talvez eu nunca vá encontra-lo.
talvez eu nem saiba por onde começar a procurar,
Eu achei que tinha me encontrado nos seus olhos,
mas agora vejo que eles se tornaram gelados
como aço.
Talvez eu tenha causado a morte de tudo o que era bom e quente
a respeito deles. Ou talvez tenha sido apenas a vida
e sua mania de apodrecer tudo o que é vivo.
E é por isso que eu tenho engolido todo o meu drama
e é por isso que me calo quando você está ao redor de mim,
mesmo quando você me olha como se quisesse me cortar em pedaços.
Tão diferente, de quando eu tinha os braços ao redor da sua cintura,
e você arrancava os botões da minha camisa
no caminho para a cama,
sem tirar os olhos de mim.
Meu amor, eu nunca liguei para os botões espalhados pelo chão
mas me parte o coração te ver assim
antes de ir embora,
e ouvir os teus passos duros pela casa.
Tentamos a sorte,
enfim, eu acho que tentei,
pena que não me restava nada pra apostar
E é certo,
você está certa
provavelmente morrerei incompleto
em algum banheiro de hotel
ou numa cama de hospital
sem ninguém por perto.
Não me dói esse pensamento
mas me dói te ver de peito aberto
tentando me trazer pra dentro”.
Deixei o computador de lado e me joguei no sofá, exausto. Não sei por quanto tempo dormi, mas quando acordei, percebi Marília sentada no sofá recolocando os botões de uma camisa minha.
- Essa camisa é tão bonita. Não quis deixar ela estragada. – Ela falou, com a voz arrastada de quem havia chorado.
- Está tudo bem.
- Achei que você tinha concordado em não escrever sobre mim. – Ela falou, apontando pra o computador.
- É só o meu jeito de esvaziar a cabeça.
Marília deixou a camisa de lado e sentou-se perto de mim.
- Nunca quis te cortar em pedaços. Sinto muito se fiz você se sentir assim.
- No fundo talvez eu tenha merecido.
Marília encostou a cabeça no meu ombro e suspirou como se estivesse carregando o peso do mundo em suas costas.
- Fica. – Falei, com a cabeça enterrada no meio dos cabelos dela.
Marília não respondeu nada, mas senti os seus dedos desabotoando com cuidado a camisa que eu estava usando.
Por enquanto, tudo ficaria bem.