Transando na madrugada
1. Depois de uma madrugada molhada, a manhã nasceu cheia de sol. Abri a janela e ele entrou no meu quarto sem pedir licença. Recebi-o sorrindo. Jamais vou recusar um encontro com o sol. Ele é benfazejo, e, por isso será sempre bem-vindo.
Junte a tudo isso o fato de eu ser filho do Ceará onde o sol brilha com inenarrável fulgor. O Ceará "é a terra do sol".
2. Eu nasci numa cidade cearense de sol brilhando o dia todo; sem interrupções. E porque é sol sertanejo, oferecendo dois espetáculos: um quando nasce e o outro quando se põe.
É bonito vê-lo nascendo, no horizonte distante, clareando a escuridão do sertão; é bonito vê-lo se despedindo, no cair da tarde, ao som da Ave Maria de Gounod e com os sinos repicando, anunciando que é a Hora do Ângelus.
3. Não sei ainda se terei o sol brilhando até o anoitecer. De repente muda tudo lá por cima e a chuva volta mais impetuosa, mais devastadora.
Não posso ver a chuva banhando as madrugadas e logo me lembro dos moradores, e são muitos, das marquises, nos seus pernoites improvisados.
4. Quase em frente ao meu edifício, sob a marquise de um prédio, dormem um casal e um vira-lata. Alguns jornais de ontem, lençois velhos e esfrangalhados, duas almofadas, e está pronto o quarto do casal.
O cãozinho se aninha nos pés do seu dono. Vez em quando, mexe seu rabinho como a querer dizer: olha estou acordado e vigilante. Não toquem nos meus amigos.
5. Noites dessas, altas horas, saí na minha janela, que se debruça sobre a rua, para dar o meu boa noite às estrelas, naquele início de madrugada alagando o céu de Salvador de ponta a ponta.
No meio delas estava o Cruzeiro do Sul, tão visível e tão brilhante, que a "Intrometida" mostrava-se como nunca, ela, que sempre se esconde no coração da constelação em cruz.
6. Estendi meu olhos até à marquise que servia de teto ao casal. Acreditem: surpreendi o casal transando. Via-se claramente o movimento identificador da transa, denunciado pelo lençol, visivelmente irrequieto.
Para não lhes interromper o idílio, fiz de conta que não via absolutamente nada. No íntimo, porém, aplaudia aquela apimentada cena de amor, tendo o cachorrinho como principal testetemunha...
7. De volta à minha cama, lembrei-me desses versos de Carlos Drummond de Andrade, perspicaz, como sempre:
"O chão é cama para o amor urgente,
amor que não espera ir para cama.
Sobre o tapete ou no duro piso, a gente
compõe de corpo e corpo a úmida trama.
E para repousar do amor, vamos à cama".
8. Diria que o casal transou com a mesma simplicidade com que acasalam as dezenas de pombos que povoam os beirais dos prédios de minha rua.
Sem cama, o casal repousou o amor no chão frio da marquise que lhe dera abrigo. É isso aí: quem não tem cama, faz amor no chão... E em alguns casos, tendo o céu como dossel.
1. Depois de uma madrugada molhada, a manhã nasceu cheia de sol. Abri a janela e ele entrou no meu quarto sem pedir licença. Recebi-o sorrindo. Jamais vou recusar um encontro com o sol. Ele é benfazejo, e, por isso será sempre bem-vindo.
Junte a tudo isso o fato de eu ser filho do Ceará onde o sol brilha com inenarrável fulgor. O Ceará "é a terra do sol".
2. Eu nasci numa cidade cearense de sol brilhando o dia todo; sem interrupções. E porque é sol sertanejo, oferecendo dois espetáculos: um quando nasce e o outro quando se põe.
É bonito vê-lo nascendo, no horizonte distante, clareando a escuridão do sertão; é bonito vê-lo se despedindo, no cair da tarde, ao som da Ave Maria de Gounod e com os sinos repicando, anunciando que é a Hora do Ângelus.
3. Não sei ainda se terei o sol brilhando até o anoitecer. De repente muda tudo lá por cima e a chuva volta mais impetuosa, mais devastadora.
Não posso ver a chuva banhando as madrugadas e logo me lembro dos moradores, e são muitos, das marquises, nos seus pernoites improvisados.
4. Quase em frente ao meu edifício, sob a marquise de um prédio, dormem um casal e um vira-lata. Alguns jornais de ontem, lençois velhos e esfrangalhados, duas almofadas, e está pronto o quarto do casal.
O cãozinho se aninha nos pés do seu dono. Vez em quando, mexe seu rabinho como a querer dizer: olha estou acordado e vigilante. Não toquem nos meus amigos.
5. Noites dessas, altas horas, saí na minha janela, que se debruça sobre a rua, para dar o meu boa noite às estrelas, naquele início de madrugada alagando o céu de Salvador de ponta a ponta.
No meio delas estava o Cruzeiro do Sul, tão visível e tão brilhante, que a "Intrometida" mostrava-se como nunca, ela, que sempre se esconde no coração da constelação em cruz.
6. Estendi meu olhos até à marquise que servia de teto ao casal. Acreditem: surpreendi o casal transando. Via-se claramente o movimento identificador da transa, denunciado pelo lençol, visivelmente irrequieto.
Para não lhes interromper o idílio, fiz de conta que não via absolutamente nada. No íntimo, porém, aplaudia aquela apimentada cena de amor, tendo o cachorrinho como principal testetemunha...
7. De volta à minha cama, lembrei-me desses versos de Carlos Drummond de Andrade, perspicaz, como sempre:
"O chão é cama para o amor urgente,
amor que não espera ir para cama.
Sobre o tapete ou no duro piso, a gente
compõe de corpo e corpo a úmida trama.
E para repousar do amor, vamos à cama".
8. Diria que o casal transou com a mesma simplicidade com que acasalam as dezenas de pombos que povoam os beirais dos prédios de minha rua.
Sem cama, o casal repousou o amor no chão frio da marquise que lhe dera abrigo. É isso aí: quem não tem cama, faz amor no chão... E em alguns casos, tendo o céu como dossel.