A FELICIDADE E O CAMAFEU
Um tempo atrás, lembro, o tema felicidade era kitsch, banal, inferior, relegado àquelas revistinhas antigas que as adolescentes adoravam.
De uns tempos para cá, tudo mudou, aliás, tudo vive mudando desde Heráclito com a história do rio; bem mais tarde com Marx e a imorredoura frase “tudo que é sólido desmancha no ar”; mais recentemente Bauman, num revival surpreendente a Tales de Mileto, determinou que a água e sua insustentável, mutável liquidez é, de fato, a substância primordial. Valeu para os tempos de Tales, vale para o nosso.
Mas voltemos ao tema: felicidade. E eis que ela emerge neste moderno e mutante oceano com estatuto superior.
Os mais imponentes filósofos, estes que em altos pedestais nos revelam o “espírito do tempo”, a tematizaram e lhe emprestaram inaudita haura.
Não me perguntem porquê. Não arrisco a entrar nestes labirintos humanos, apenas sei que o Minotauro é nosso terrível, inelutável destino.
Fato é que a felicidade está entre nós, o debate sobre ela, pelo menos, pois a própria insiste em escapar como água em cesto.
Diz um autor, não lembro qual, que a felicidade não estava nos planos do Criador. Não duvido, vejo infelicidade por todo canto.
Tempo atrás, na crista da onda/modismo também me empolguei a escrever um artigo sobre ela. E comecei a pesquisar. Tenho a mania de estudar com certa profundidade antes de escrever. Muitas vezes isto mais atrapalha que ajuda.
Foi o que aconteceu. Platão, Aristóteles, Epicuro, os orientais...filósofo após filósofo, em todas as épocas, cada qual dando seu pitaco sobre o impossível sonho humano de encontrar estas terras de leite e mel.
Atordoado e emaranhado com o a imensidão do que li, tomei uma decisão: o mundo, para infelicidade geral, teria que passar sem meu artigo sobre felicidade.
Isto até o dia de hoje, sim hoje, 22 de julho de 2020. O dia em que eu, gotejando de infelicidade própria, vi a felicidade em ato, com meus próprios olhos, a apenas 4 metros de distância.
Sei, ficaram curiosos, esta era a intensão, explico. Como todo ser, mesmo quarentênico, estou atado às cadeias da necessidade. Preciso comer para sobreviver.
Fui ao super. Na saída, outro ato necessário: consertar o celular, viver como sem ele? O técnico pediu 30 minutos. Rodei um pouco e cansado sentei numa cafeteria e pedi o óbvio, um cafezinho.
Percebi algo incrível, que sem celular a gente começa a ver coisas ao redor.
E o velho, calculei uns 78 anos, cabelos alvos, chegou com um saquinho de compras do super e sentou de perfil na minha frente. Calçava uma botina marrom, destas de velho, muito confortáveis, uma camisa de manga comprida escura e um colete de lã, apesar do calor julino de mudança climática.
Logo veio o garçom com um cafezinho e um prato com algo que não consegui identificar. Atento fiquei. Posicionou a máscara preta no queixo e sorveu um gole de café. Sabem o prazer do primeiro gole? multipliquem por 10, papilas gustativas em ação.
Com o guardanapo apanhou o doce do prato. Havia ritual. Era um camafeu, sabem? aquele doce branco, clássico, adorado por Mozart, com uma noz no meio. Aí chegou o momento da epifania, o clímax desta crônica.
Levou-o a boca e tirou um pequeno naco, não havia pressa. E começou a mastigar com um prazer dos deuses.
Redobrei a atenção, impressionadíssimo. Parecia que cada célula de seu corpo, em uníssono orgânico, estava orientada para a plena degustação daquele camafeu. Entre um naco e outro, um pequeno gole de café.
Tive o ímpeto de pedir logo 6 daquelas perdiçõezinhas brancas e devorá-las de uma vez, mas logo desisti.
Lembrei o filme “A Festa de Babette”, o sabor, o bem comer, é uma arte para os iniciados. E nesta arte eu não chegava nem aos pés do seu Alberto, vamos chamá-lo assim.
Me veio a imagem de Sísifo e seu trágico destino no inferno: para sempre rolar a pedra na montanha.
Mas até Sísifo, nos mostrou Camus, tem seus momentos felizes, é quando desce para de novo e de novo rolar a pedra.
Após cumprir o ritual de felicidade, saborear o último pedaço do camafeu, o último gole do café, seu Alberto pagou a conta e saiu para continuar rolando a pedra de sua vida.
Eu fiquei com a minha, enorme, pesada, agora colado ao celular lendo as péssimas notícias do dia.
De uns tempos para cá, tudo mudou, aliás, tudo vive mudando desde Heráclito com a história do rio; bem mais tarde com Marx e a imorredoura frase “tudo que é sólido desmancha no ar”; mais recentemente Bauman, num revival surpreendente a Tales de Mileto, determinou que a água e sua insustentável, mutável liquidez é, de fato, a substância primordial. Valeu para os tempos de Tales, vale para o nosso.
Mas voltemos ao tema: felicidade. E eis que ela emerge neste moderno e mutante oceano com estatuto superior.
Os mais imponentes filósofos, estes que em altos pedestais nos revelam o “espírito do tempo”, a tematizaram e lhe emprestaram inaudita haura.
Não me perguntem porquê. Não arrisco a entrar nestes labirintos humanos, apenas sei que o Minotauro é nosso terrível, inelutável destino.
Fato é que a felicidade está entre nós, o debate sobre ela, pelo menos, pois a própria insiste em escapar como água em cesto.
Diz um autor, não lembro qual, que a felicidade não estava nos planos do Criador. Não duvido, vejo infelicidade por todo canto.
Tempo atrás, na crista da onda/modismo também me empolguei a escrever um artigo sobre ela. E comecei a pesquisar. Tenho a mania de estudar com certa profundidade antes de escrever. Muitas vezes isto mais atrapalha que ajuda.
Foi o que aconteceu. Platão, Aristóteles, Epicuro, os orientais...filósofo após filósofo, em todas as épocas, cada qual dando seu pitaco sobre o impossível sonho humano de encontrar estas terras de leite e mel.
Atordoado e emaranhado com o a imensidão do que li, tomei uma decisão: o mundo, para infelicidade geral, teria que passar sem meu artigo sobre felicidade.
Isto até o dia de hoje, sim hoje, 22 de julho de 2020. O dia em que eu, gotejando de infelicidade própria, vi a felicidade em ato, com meus próprios olhos, a apenas 4 metros de distância.
Sei, ficaram curiosos, esta era a intensão, explico. Como todo ser, mesmo quarentênico, estou atado às cadeias da necessidade. Preciso comer para sobreviver.
Fui ao super. Na saída, outro ato necessário: consertar o celular, viver como sem ele? O técnico pediu 30 minutos. Rodei um pouco e cansado sentei numa cafeteria e pedi o óbvio, um cafezinho.
Percebi algo incrível, que sem celular a gente começa a ver coisas ao redor.
E o velho, calculei uns 78 anos, cabelos alvos, chegou com um saquinho de compras do super e sentou de perfil na minha frente. Calçava uma botina marrom, destas de velho, muito confortáveis, uma camisa de manga comprida escura e um colete de lã, apesar do calor julino de mudança climática.
Logo veio o garçom com um cafezinho e um prato com algo que não consegui identificar. Atento fiquei. Posicionou a máscara preta no queixo e sorveu um gole de café. Sabem o prazer do primeiro gole? multipliquem por 10, papilas gustativas em ação.
Com o guardanapo apanhou o doce do prato. Havia ritual. Era um camafeu, sabem? aquele doce branco, clássico, adorado por Mozart, com uma noz no meio. Aí chegou o momento da epifania, o clímax desta crônica.
Levou-o a boca e tirou um pequeno naco, não havia pressa. E começou a mastigar com um prazer dos deuses.
Redobrei a atenção, impressionadíssimo. Parecia que cada célula de seu corpo, em uníssono orgânico, estava orientada para a plena degustação daquele camafeu. Entre um naco e outro, um pequeno gole de café.
Tive o ímpeto de pedir logo 6 daquelas perdiçõezinhas brancas e devorá-las de uma vez, mas logo desisti.
Lembrei o filme “A Festa de Babette”, o sabor, o bem comer, é uma arte para os iniciados. E nesta arte eu não chegava nem aos pés do seu Alberto, vamos chamá-lo assim.
Me veio a imagem de Sísifo e seu trágico destino no inferno: para sempre rolar a pedra na montanha.
Mas até Sísifo, nos mostrou Camus, tem seus momentos felizes, é quando desce para de novo e de novo rolar a pedra.
Após cumprir o ritual de felicidade, saborear o último pedaço do camafeu, o último gole do café, seu Alberto pagou a conta e saiu para continuar rolando a pedra de sua vida.
Eu fiquei com a minha, enorme, pesada, agora colado ao celular lendo as péssimas notícias do dia.