Prerrogativa de Garupa
Há coisas que só o garupa pode ver. Por mais que o piloto esteja atento a tudo à sua frente, algumas coisas, alguns ângulos, alguns movimentos, só o garupa pode testemunhar. Sei lá, talvez sejam olhares diferentes, objetivos diferentes. O piloto quer sentir a moto, perceber seu comportamento numa curva, numa brecada, numa arrancada. Além disso, precisa estar ligado nos detalhes, no carro da frente, no de trás, naquele que começa a aparecer no horizonte da pista oposta, e naquele que ainda vai se configurar após a curva. E tem ainda o GPS, as luzes previstas e imprevistas no painel, etc. É muita coisa. Para o piloto, apreciar a paisagem aparece em segundo plano. É lucro.
Para o garupa, no entanto, a paisagem é tudo, muitas vezes é o objetivo da viagem. Sem muito mais o que fazer, contemplar a paisagem é tudo o que cabe a ele. Pouca coisa escapa ao garupa. Todos os veículos que ultrapassam e que são ultrapassados; as crianças dos bancos traseiros, olhares atentos, alguns acenos, olhos sonhadores que devem se perguntar do prazer da dupla sobre aquela máquina; motoristas entediados, olhares tristes que pousam sobre onde gostariam de estar. E assim o garupa, tão perto e tão independente do seu piloto, constrói seu cenário particular, sua própria história da viagem.
Em 2011, durante uma viagem pelas Dolomitas italianas, vivi minha história única de garupa. História única e inacreditável. Literalmente inacreditável, já que ninguém acreditou nela, além de mim. Éramos 4 casais em motos BMW, durante nossa viagem aos Alpes. De passagem pela cadeia montanhosa ao norte da Itália, as Dolomitas, subíamos por uma linda e movimentada estrada, era uma ensolarada e quente manhã de julho. À direita e à esquerda se revezavam os dois lados de uma mesma montanha, ora morros com vegetação razoavelmente densa, ora precipícios e uma linda vista da planície abaixo. E como ao garupa nada escapa, foi numa olhadela descompromissada para cima quando avistei um grande urso marrom-dourado, brilhante, em pé, altivo. A vegetação e o movimento da moto fizeram dessa visão um flash apenas, rápido demais para poder chamar atenção do piloto, que certamente nada veria a seguir. Assim como eu não mais avistei o urso. E tudo indicava que ninguém mais o teria visto, já que isso fatalmente geraria um certo tumulto.
E assim fiquei tão estupefata que só falei sobre isso na próxima parada. Não acreditaram, me zoaram muito, atribuíram a visão ao chá que bebi no café da manhã, e disseram que tanto não era verdade que não poderia existir um urso naquela região. Como não podia provar e não conhecia a história dos animais daquela região, me calei e deixei que pensassem que nada daquilo aconteceu.
Foram necessários três anos e uma viagem à terra dos tais ursos, no Canadá, também de moto, para que a história fosse recontada. Soube ali que, sim, há ursos no território das Dolomitas. Na verdade, originalmente havia ursos na região, mas foram eliminados devido ao perigo que ofereciam. Apenas recentemente eles foram reintroduzidos ali. Portanto, eu poderia, assim como aconteceu no Canadá, ter visto um urso por ali.
O piloto não viu, ninguém viu. Só essa garupa. Podem não acreditar, mas ninguém lhe rouba essa história; é prerrogativa que lhe cabe. E ponto final.
(11 Setembro 2015)