Uma noite que passou
Essa noite, dezessete ou dezoito de julho de dois mil e vinte, tive um sonho agitado, daqueles que parecem se passar num filme. Com cenas diferentes e, por vezes, desconexas, lembro-me de alguns planos, apenas.
Primeiro, eu estava dentro de um ônibus de linha, antigo e barulhento, que passava por uma estrada fria e com serração. Ali, tínhamos – os passageiros - a sensação de perigo, já que carros davam meia-volta à nossa frente. Era como se, a partir dali, houvessem incertezas quanto a nossa segurança. Apesar dos carros particulares conseguirem retornar, o ônibus tinha que seguir seu trajeto, já que era sua programação. Tive a sensação de que poderia questionar, mas, não faria diferença. O jeito era encarar a situação de frente.
Não sei porque, em outro momento, já não estava mais no ônibus. Naquela mesma estrada ainda, que passou a ficar mais estreita, lembro de um guia. Ele nos levava por essa, que agora era uma trilha, a pé. Ao lado, havia um precipício feito por falésias, que davam numa praia. Esta era exuberante, mas não era um dia de sol, não havia pessoas gozando, livre e tranquilamente, de um típico dia de praia. Essa trilha guardava o perigo de cair, havia ainda serração e o sentimento de frio.
O que lembro, com menos serração e mais nitidez, é que essa estrada-trilha nos levou a um casebre. Pobre, pequeno, frio, ficava no alto de uma montanha. Possuía paredes velhas, um pequeno fogão a lenha, uma mesa de madeira - já escurecida pelo tempo -, o chão sujo e desarrumado e o cheiro de uma mistura de lenha e fumo. Quando eu era pequeno, nos anos 90, convivi com pessoas muito pobres, em que o acesso ao combustível que necessitavam para viver se dava através da lenha... e do fumo.
Nessa casinha, o guia demonstrava como era a vida daquele morador, muito pobre, que, pelo visto, estava ausente de sua casa. Recordo-me que a casa possuía apenas um cômodo e, neste, havia a parte cozinha e uma espécie de sala/quarto. Entre esses dois subcômodos, havia uma distraída janela.
Esquecendo o que o guia apresentava, fiquei admirado com a janela. Admirado, saquei o celular para registrar a paisagem. O enquadramento mostrava uma natureza verde-montanhosa onde, ao fundo e ao longe, após um mangue e uma várzea, podia-se ver a parte mais rica de uma cidade, com prédios, pontes e praia.
Depois de me impressionar com aquela paisagem, lembro de um fim de sonho num terreiro grande e cimentado, parecido com os de secagem de café. Ali, ofereciam-se comida e um casal de turistas dançava, numa felicidade incompatível com a realidade. Tocava uma música latina, espécie de salsa, com uma letra em espanhol e cômica, que me fazia rir, mesmo após ter me deparado com toda lenha, frio e fumo, distante de toda riqueza material.
Agora, à tarde, foi que me recordei daquele sonho. Fico entre envaidecido e chocado. Sequer consigo tocar um instrumento. Porém, naquele sonho, fiz uma música, com direito a letra, em outra língua que não domino, e que diverte. Descobri que o inconsciente é mais capaz que eu, modéstia à parte. O que consigo, conscientemente, é pensar o que aquele sonho significou, e escrever – não em letra de música; tampouco em espanhol.
Como estou na fase de tentar entender a condição dependente da nossa América Latina e, portanto, era o que eu lia antes de dormir, deduzo, então, que o sonho seja a consolidação da aprendizagem, ao modo que meu inconsciente consegue melhor entender: metaforicamente.
Enquanto nos deixarmos nas mãos do imperialismo, só nos caberá aquele sonho. Caminharmos por trilhas frias e estreitas, sem autonomia e com restrições, ainda que tenhamos praias exuberantes. Passivamente, observar a beleza da natureza e fruí-la somente através da janela de um casebre, pobre, precário e inacessível. Apesar de toda a pobreza e limitação, manter a resistência, livre, num terreiro ainda que pobre, criando músicas típicas para dançarmos, zombarmos (enquanto) e para sobrevivermos.
Esse sonho pode também comportar outra interpretação. Como receptivos e passeios étnicos com direito à guia, aventura e danças típicas, estaríamos mostrando ao mundo um lugar de memória. Um lugar em que, vigilantes, lembramos da época em que víamos nossas riquezas tão somente através da janela de um casebre na montanha solitária, turva e fria. Um lugar, como uma noite que passou.