Belém do Pará, Obrigado

Para alguns, com o passar dos anos, muitos anos, chega a consciência de que essa maravilhosa viagem, dádiva divina, plasmada pelos pais, em especial pelas mães, a vida, anuncia, prenuncia o seu fim. Fim ilusório, por tratar-se somente desse primeiro roteiro pelo plano físico denso da Terra, dica deixada explícita por São Paulo: “a morte é a maior das mentiras”...

Então, quando se chega à consciência promovida pelo rei dos reis, o tempo, que anuncia faltar pouco para o “ai, ai, ai, ai, ai, está chegando a hora”, ou avisa aos passageiros, “próxima parada estação final, é obrigatório o desembarque”, somos assolados por espécie de pressa, de cobrança, para que, como se marinheiros fossemos, digamos adeus e agradeçamos a tantos amores, construídos em todos os portos desse maravilhoso “tour”.

Um desses tantos amores, certamente é a terra onde se respira pela primeira vez e fora do ninho disponível, juntinho ao coração materno. Belém do Pará, obrigado!

Obrigado Belém, por teres sido espécie de “santo casamenteiro” de meus pais e teres formalizado o início dessa viagem no Cartório do Primeiro Ofício.

Obrigado Belém, pela primeira infância em uma de tuas ilhas paradisíacas, Mosqueiro, onde os banhos de rio, que cortava o terreno, eram coloridos pela plumagem amarela de filhotes da pata Lua, de folhagens e flores da trepadeira de maracujá e das árvores de sapoti.

Obrigado Belém, por teres proporcionado nessa mesma ilha as experiências primeiras: a primeira professora, o primeiro bichinho de estimação, o plantio das primeiras mudas, os quatro primeiros amiguinhos. E, dentre eles, menina de cachos dourados, a única com quem se trocava a merenda e, a mim, a exclusividade de seu ofertar de pipo, chupeta.

Obrigado Belém, pela escola pública de ótima qualidade, no grupo escolar e no colégio estadual. Nesse colégio, o tradicional CEPC, localizado no lado mais estreito do retângulo que molda a Praça da Bandeira: professores, aulas, brincadeiras, não somente no recreio, e uma turma que marcou por dar trabalho aos senhores, Geraldo e Raul, encarregados da disciplina.

Obrigado Belém, pelo privilégio de nesses anos da década de 50, pelo Sr. Raul que, além de disciplinador, era saxofonista e líder de conjunto de “jazz”, o Vitória. Então, o colégio estadual, o inesquecível CEPC, brindava os alunos, com manhãs dançantes de domingo, numa grande sala do segundo andar.

Essas domingueiras, a cargo de Raul Silva e alguns componentes do “Vitória”, ficavam bem melhores quando se conseguia ter como par aluna dois anos mais adiantada, titular do time de voleibol do colégio, sempre perfumada com priprioca (raiz aromática de planta amazônica) e, o principal, deixava-se levar com leveza e muita destreza no dançar.

Obrigado Belém, por teres preparado no CEPC: grupo de escol de professores para nos estimular de forma definitiva à busca do conhecimento; e ambiente onde foram construídas as mais longevas amizades.

Dentre essas longevas amizades, irmão e camarada com imensa capacidade de persuasão, que facilitou as atividades que mais deram prazer, esporte e dança. Sua habilidade conseguia que frequentássemos quadras de corporações militares, quadras e salões de clubes. Mais do que isso, certa vez, havia baile em local bem afastado da cidade, como voltaríamos? Conseguiu carona no ônibus alugado, para o transporte dos músicos.

Obrigado Belém, por permitires que fôssemos bem sucedidos nas aventuras de “furar festas”, atividade hoje conhecida como “penetrar nos bailes”. Os “furões de festas” de ontem, os “penetras” de hoje. Mas do que isso, Obrigado Belém, por encherem de compreensão as aniversariantes e seus pais que, apesar de entenderem a situação, fingiam estarem sendo enganados.

Obrigado Belém, pelas peladas de rua, nas de terra batida, Cesário Alvim, nas pavimentadas da Praça Amazonas e da Frei Gil, e nos gramados da Praça da República. Esta última com direito a corridas dos bombeiros, pois não era permitido.

Obrigado Belém, por teres proporcionado “a vizinhança da Cesário”: a masculina sempre pronta ás peladas com bola de seringa, ou de borracha (raridade); e a feminina, da mesma faixa de idade, às brincadeiras de roda, berlinda, telefone, queimado e a melhor de todas, pó, “rouge”, ou baton, pois correspondia, naqueles tempos, à curiosidade maior da “pubecência”, idade entre puberdade e adolescência.

Obrigado Belém, por sábia e velha senhora da Cesário Alvim (rua naquela ocasião da periferia), com as pernas inchadas de filaria e que ensinou bastante sobre solidariedade e amizade.

Obrigado Belém, por tantas outras experiências e aprendizados, até pelos vícios, que nos apresentaste e não tivemos sabedoria para evita-los. Mas, a extensa contraparte positiva foi mais do que suficiente, para abandoná-los, sob determinação da vontade.

Obrigado Belém, por tua gastronomia, que costuma provocar a exclamação, após a degustação: “sabor dos deuses”! Obrigado especial a tua pupunha cozida, a teu pato no tucupi, a teu doce de bacuri, a teu filhote à Piracaia, a teu tacacá, ao teu açaí e aos teus sorvetes seja de qualquer uma de tuas frutas. Obrigado Belém, por tanta generosidade.

Obrigado Belém por tua poesia, tua música, enfim tua arte que encantou a outrora juventude, hoje, com muitos não mais neste plano, para ajudar a contar essa história. Obrigado por tuas eneidas, adalcindas, edyres, ruys, waldemares, fafás, leilas, lucinhas, pinducas, nilsons e muitos outros, que semearam a arte, de forma duradoura e original, Original tal qual, nos tempos coloniais, tiveste semeada tua arborização central, pela qual serias identificada: “Cidade das Mangueiras”.

Obrigado Belém, por teres, com tua baía de Guajará, sido o berço de nascimento da agremiação esportiva mais querida por ti e tua gente, o Clube do Remo. Obrigado por permitires que o Clube do Remo nos encantasse: com festas e carnavais, tanto na sede náutica, quanto na social; com partidas de futebol, basquetebol, voleibol; e, principalmente, as regatas assistidas de pequeno navio, no qual os intervalos longos entre páreos eram preenchidos com música e dança.

Obrigado Belém, pelos amores. Amores de vizinhança, de festas, de colégio, de férias. Aos de festas e de férias obrigado especial, pela intensidade provocada, pela brevidade de sua existência.

Belém do Pará, obrigado por te teres eternizado no mais íntimo dos seres daquela geração. Permaneces viva, mesmo para aqueles que, compulsoriamente, te deixaram. Tua generosidade, presente em tantas oportunidades patrocinadoras de alegria de viver, recebida naqueles anos de máxima energia, te transformaram em espécie de patrimônio afetivo, intransferível, inalienável.

Obrigado Belém, fizeste a vida melhor e mais feliz.

Continuarás parceira nas viagens que virão, por mares nunca dantes navegados e, assim, como nessa, desempenharás o mesmo papel, de facilitadora do bem viver.

J Coelho
Enviado por J Coelho em 14/07/2020
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