Bandoleiro de Fronteira
Esse foi o apelido que o professor de Jornalismo da UnB, Murilo Ramos (Murilo Cesar Oliveira Ramos) me deu, em alusão ao nome, saxão e hispano. Realmente, William e Santiago dão bem essa ideia de um ser híbrido, transfronteiriço, volátil, escorregadio. Nos filmes de faroeste, dizia ele, sempre apareciam heróis ou facínoras com nomes mistos, tipo Cisco Kid, Speed González ou Manolo Brown. Não sabia ele, hoje Professor Emérito de Jornalismo da Unb - nem eu - que, um dia, me afeiçoaria tanto à realidade da Fronteira, porosa, movediça, perigosa e instigante, onde vivi muitos anos de minha vida.
No meu caso, a Fronteira é tríplice: Puerto Iguazu, Argentina; Foz do Iguaçu, Brasil; e Ciudad del Este, Paraguai. A propaganda da região, para fins turísticos chamada de Iguassu, despreza a cedilha do português e adota uma grafia mais internacional. No folheto publicitário informa-se que por aqui há oitenta e uma etnias e dez idiomas. Completando, neste julho de 2020, oito anos de vida por aqui, pergunto se não seriam mais as etnias e idiomas...
Nessas reminiscências, volto aos meus 10 ou 12 anos, fanático por revistas de quadrinhos, principalmente as de faroeste. Isso ficava escondido no caixote secreto de meu tio José Maria. Além da atração em si pelo tema, os caixotes de madeira do tio escondiam revistas para maiores de 13 anos. E no cinema, vendo Gene Autry, Rock Lane, Roy Rogers e a beleza de Dale Evans, ganhavam mais tempero àquelas relíquias impressas. No cinema do operariado de Pitangui, o Cetepense, misturavam-se Estados Unidos e México, Bobby Dylan e Miguel Aceves Mejia, além de temas como o Álamo e a ocupação do Texas.
Por aqui, transito regularmente entre Brasil, Argentina e Paraguai. Se quiser celebro dois natais e duas passagens de ano de cada vez, em razão dos fusos horários. Além disso, misturo comidas e costumes, nomes e sobrenomes. Esfirra, quibe, tapioca, falafel, homus, hamburguesa, lomito, batata frita, chipa, coxinha, empada, empadinha ou empanada, bife de chorizo - do tamanho de um tijolo - narguilé e feijoada, tudo isso é a porosidade da Fronteira expressa nos costumes, em geral, e na culinária muito especialmente. Toda essa miscelânea se pode comer em Foz do Iguaçu, sem dúvida a capital da Tríplice Fronteira.
Pois essa Fronteira porosa cozinha e se comunica em vários idiomas. Os garçons falam portunhol, portinglês, guaranhol e outros mais idiomas mestiços. A Fonteira porosa fala chinês de Taiwan e da China Continental, japonês, coreano, muito árabe, português com sotaque gaúcho, catarinense ou paranaense, e o espanhol nas variantes do Paraguai e da Argentina e, mais recentemente, dos refugiados da Venezuela e de Cuba. A Fronteira também fala – ou usa expressões - do guarani, como: "chiru", por exemplo, apelido do paraguaio; "rapai" é do brasileiro, curepa é do argentino, com uma variedade de conotações, entre elas até as ofensivas, dependendo do contexto, da entonação e do jogo de futebol da Libertadores ou da Copa do Mundo a que se esteja assistindo.
A Fronteira porosa canta e dança sertanejo, chamamê, guarânia, samba, música árabe, cachaca e outros ritmos. Festa de casamento de paraguaios pode ser celebrada em chácara de Foz, brasileiros vão fazer festa de 15 anos em Ciudad del Este. Isso é Fronteira, e Fronteira é outro departamento. Gente da Grande Ciudad del Este vai para Itaipulândia, Santa Terezinha, São Miguel do Iguaçu e Santa Helena, balneários à beira da represa de Itaipu. Brasileiros viajam muito para visitar parentes em Santa Rita, pujante cidade paraguaia, fundada e desenvolvida por brasileiros, a setenta quilômetros da fronteira.
De uns dez anos para cá, brasileiros invadem as faculdades de Ciudad del Este, Presidente Franco e Hernandarias para estudar medicina e outras disciplinas. Argentinos de Puerto Iguazu, acima dos trinta anos de idade, falam português sem sotaque, aprendido na Rede Globo ou SBT, antes de captarem sinais de emissoras argentinas de Posadas ou Buenos Aires. A Fronteira, sempre porosa, se enovela mais depois do acordo de radicação temporária, que facilita o trabalho paraguaio, brasileiro e argentino em diferentes cidades da região. E essa integração abarca também a integração familiar, pelos casamentos entre nacionais dos três países.
A par disso tudo, a Fronteira possui também seus intestinos, onde se move o submundo do tráfico, das armas, das máfias e negócios escusos, que utilizam a proximidade de três países para migrar de um a outro lado dos dois rios, o Iguaçu e o Paraná. Nisso aí, nenhuma novidade: se existe mundo, tem que haver o submundo. Uma amostra do que rola por essa dimensão se pode ler no livro “Arabesco, la Fontera Salvage”, de Pancho Oddone, escritor argentino radicado no Paraguai, falecido em 2016. "Arabesco" é um romance de ação e intriga bem ao estilo norte-americano, madurinho para o cinema.
E, voltando ao professor Murilo Ramos, quero dizer-lhe que o "bandoleiro" assumiu o apelido, se fixou numa fronteira, embora não tenha levado a alcunha às últimas consequências. Depois da UnB, foi professor de Literatura, criou e manteve um jornal em Pitangui, Minas, por algum tempo. Mais tarde, funcionário público, rodou pelo mundo, escreveu livros, porém nunca esqueceu o ambiente gostoso daqueles anos de faculdade, onde tanto aprendeu. Em especial, com o carismático professor, mestre da redação jornalística e paladino da liberdade de expressão.