SOLILÓQUIO DE INVERNO

Estou em estado de pureza: habita-me uma vivaz intenção de conclamar os meus vários egos poéticos (e ainda os remanescentes alter egos) para refletir e convidar o coração sensitivo a uma prosa intimista ou para meditar sobre um poema de loas à Ave Maria, quando a noite chegar e começar a bordar de breu o campinho agreste à frente de minha janela de passagem rumo ao mar, neste memorial vivo que é o Bairro Passárgada, onde também, como Manuel Bandeira, "... sou amigo do rei e aqui tenho a mulher na cama que escolherei". Este é o meu contemplativo, bem devagar, devagarinho, que começa a divagar na tez morena dos nativos, na exposição ao sol dos verões migrantes do ancestral andarilho do arquipélago português dos Açores, pescador e tropeiro das vacarias, no episódico sentir de lástimas e penares por mim e pelos eventuais companheiros de itinerário rumo à implacável finitude. Aquele sopro morrinhento, que a tudo apaga com o solapar dos ventos nas dunas do Senhor Tempo. No pequeno vaso do jardinzinho à frente, observo a haste da planta, de onde, além da desabrochada e tímida florinha, uns brotos me olham travestidos de verde muito escuro, pejado de clorofila, e seus olhinhos vegetais parecem sorrir. Enquanto isso, o nosso gato Black de 13 anos, num aceno fisiológico da senilidade, levanta a cauda longa e plumosa e mija sobre as lindas suculentas inda cobertas de orvalho. O sol tímido, que acabara de nascer, rebrilha sobre os pingos de urina. E me lembro de agradecer ao Absoluto que o sistema renal do sapeca felino ainda esteja filtrando com qualidade a sua ingesta líquida. Enfim, a poética aflora das vertentes que se derramam nas fontes do Mistério e, por vezes, me acachapa nos solilóquios monossilábicos do respirar dos signos e das palavras através de mim, já não tão monossilábicos. Talvez seja por todo esse conjunto de coisas que o Black somente consiga miar. Ele talvez saiba os porquês do seu tresloucado tutor continuar tentando identificar o arquipélago de rizomas que compõe o ininteligível.

MONCKS, Joaquim. O CAOS MORDE A PALAVRA. Obra inédita em livro solo, 2020/23.

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