DEVANEIOS
 
Não sei o que hoje sinto. Ou sei?... Claro que sim! Por vergonha, talvez, temo confessar e... está bem! Eu admito: é a chuva que, ora, cai! Sim, é ela quem me torna assim... sei lá, bobo, nostálgico a navegar, não nas águas que caem, mas – e tão somente, diga-se – nas asas das minhas elucubrações!

Abro a janela. O imã dos meus devaneios, trazido pelo vento, molha-me a face. Respiro fundo. Inalo o ar úmido que a mim chega. Busco o cheiro de terra molhada ávida pela chuva que cai. Não o sinto, não o encontro. O negro asfalto da grande cidade é mau – não deixou a saudosa terra sugar as lágrimas celestiais. E aqui ficamos – eu, a terra, a chuva – sedentos de cheiro, de água e objetivo. Sim, o cheiro saciaria as minhas saudades. E o objetivo da chuva que é o de molhar a terra, fazê-la brotar do seu âmago a vida, dar-nos o pão – nos fora retirado.

Nada disso acontece na cidade grande. O atro asfalto não deixa a chuva chegar  à terra. Por isso mesmo, no negro asfalto não nascem árvores que dão frutos; não nasce o trigo que se transforma em pão; não nasce a flor que alimenta o amor. Ele, o atro asfalto, não me deixa deliciar com o doce aroma da terra molhada.

Fecho a janela do meu apartamento no décimo andar. Nem a chuva, a meu bel prazer posso ver. Vivo cercado. À minha volta, há imensos arranha-céus. Não dá para ver nem a linha do horizonte. O céu que vislumbro não é um céu. É um pequeno ponto fixado no éter. As colunas de concreto – que me privam de o céu ver – são, na realidade, as grades que a mim aprisionam. E são essas as coisas que me tornam saudosista. Lembro-me de que podia assentar-me, à tarde, na soleira da minha janela, recostar-me no batente e ver as pessoas passarem na rua onde morava. Hoje, contudo, por ser um viciado em televisão, faço dela uma janela sem batente – ligada a uma parafernália de cabos – na qual não posso me assentar.

Ela é a minha TV/janela Indiscreta, onde não vejo a minha rua, mas, sim, o mundo. Por intermédio dela adentro lares e vejo casais em intimidade; vejo crimes serem cometidos; vejo guerras, mortes, terror. Vejo políticos corruptos tramando novas modalidades de ao povo surrupiar. O que vejo não me faz feliz. Tornam-me, contudo, mais saudosista da minha janela sem/TV, onde não me deixava a tudo ver, mas fazia-me feliz pelo tudo que via.

Como era gostoso ver, em outras janelas, moças assentadas – ou mesmo nelas debruçadas (as namoradeiras) – assistindo ao passeio de rapazes buscando um namoro. E elas, acesas, ‘davam bola’ com um discreto e matreiro sorriso. O jovem passava. Com o olhar ela o seguia. Se ele desse um quebra, (Essa expressão “dar um quebra” significava o seguir em frente e, ainda andando, volver cabeça e olhares para a moça da janela.) ela – a todos os olhares e quebras – correspondia com um sorriso de assentimento. Estava dado o primeiro passo para o namoro – um possível casamento! Assim era, e foi o começo de muitos romances, amores e casamentos que, outrora, perduravam!

Quando a chuva chegava, a terra agradecia e a molecada exultava. Terra molhada era melhor para se jogar bola de gude e ferrinho – nós falávamos ferrim! E o jogo de ferrim consistia em traçarmos no macio e úmido chão, duas figuras em forma de barquinhos – o jogo tinha, também, o nome de barquinhas! Feitas as figuras no chão, cada jogador, munido do respectivo ferrinho, se preparava para a contenda. Tirava-se o par ou ímpar e o ganhador do sorteio iniciava o jogo. De pé ou de cócoras – isso era, antes, combinado – o duelo começava. Se de pé, o ferrim era seguro pelos dedos indicador e polegar sendo, então, lançado ao solo. Se fincasse na terra, o jogador traçava uma reta do furo até a borda da sua barquinha. Tinha o direito de continuar jogando, riscando e cercando a barquinha do adversário. Só perdia a vez no momento em que o ferrinho não mais fincasse na terra ou no momento em que o furo no solo não permitisse ao jogador traçar uma reta até o último furo. As mães, coitadas, ficavam danadas da vida. O principal motivo era a roupa da molecada, constantemente suja de barro.

Hoje já não se joga mais o ferrim; não há mais o barro a sujar-me as roupas; não há mais o gostoso cheiro de terra molhada – o negro asfalto não deixa. As águas, agora, correm céleres pelas ruas sem, contudo, ao solo molhar, sem a vida gerar. E nessa louca corrida (Hoje tudo é rápido, ligeiro, apressado!) as águas, que deveriam gerar vidas, ceifa-as!

Hoje, da minha indiscreta janela, vejo outros indiscretos que das suas indiscretas me vêm. Contudo não vejo “os quebras” de então – a rua está mais distante! Não vejo as moças casadoiras nos batentes debruçadas distribuindo sorrisos e olhares buscando (Quem sabe?) um namoro, um futuro casamento! Assentar-se no batente é perigoso. Pode-se esborrachar-se lá de cima onde se encontra, indo de encontro ao solo. Portanto, nem pensar!

Nada disso vejo. As saudades, contudo, são mais latentes por terem – somente nas lembranças – o mavioso chilrear das andorinhas a bailarem na chuva à cata de insetos; o nascimento de belas flores silvestres e o saudoso perfume da terra molhada!

-Ferrinhos para se jogar? Não há mais! E agora, saudade?
-Moças namoradeiras nas janelas? Não há mais! E agora, saudade?
-Cheiro de terra molhada? Não há mais! E agora, saudade?
-Saudades? Ah!... Essas são indeléveis e existem aos montões!
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Altamiro Fernandes da Cruz
Enviado por Altamiro Fernandes da Cruz em 11/07/2020
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