CINZAS DA QUARTA-FEIRA!
Você me conhece? Como pode se nem eu mesmo me conheço, nem me reconheço? Vivo aos pedaços, reunindo o que sobrou de um corpo que a alma abandonou, à espera do ocaso da existência terrena.
Estranhei-me no rosto que contemplei no espelho, incrivelmente, mais jovem do que eu era a vinte anos, apenas mais vazio de expressão. As marcas do tempo eu carrego na alma, cicatrizadas e escondidas em um recôndito de vivências que tento esquecer para que não interfiram na vida miserável que tenho agora. Finalmente, compreendi que a vida é o "agora", nem o antes, nem o depois.
Também não me reconheço no corpo, não tão esbelto, dolorido e cansado que me carrega. Nele o tempo não me poupou. A força física e o vigor de outrora fenecem, abandonam-me nos pequenos movimentos que ainda consigo realizar. Tornei-me um dependente, da ajuda alheia, e dos químicos que me intoxicam e que me mantém respirando; essas drogas lícitas que são os remédios. Tomo um, para combater o efeito colateral de outro e já nem sei se teria esses efeitos se não tomasse nenhum deles.
Acho que sou hipocondríaco! São tantas as "ias", os "ismos" as "oses", e as "ites" que carrego que até pensei em mudar de nome, Sr. Ismosetitesias!
Há alguns anos comecei a ter ataques de epilepsia, que me deixam fora do ar e me tiram o chão, e fico no limbo da existência, destituído de razão e de emoção, à mercê da compaixão de outrem. Tenho crises agudas de nevralgia, com espinhos a ferroar minhas entranhas. E, frequentemente, sofro com disenterias, não bastassem as "cagadas" que já fiz na vida. Já fui acometido por faringite, estomatite, bronquite, amigdalite, e hoje estou com bursite. Chique, né?
Também estou com bruxismo, porque ranjo os dentes, de raiva, por ter me tornado um morto-vivo. O reumatismo também chegou, porque velho que se preze não dispensa uma boa dor nas juntas!
Tudo isso causou um abalo sísmico em meu cérebro, debilitando-o pela loucura de viver cada segundo, insanamente, desesperadamente, no limite do tempo que me resta. Vivo de impulsos e disparates, não mais de bom senso. O bom senso é descartável quando o tempo se esvai, foge-nos pela fresta da vida.
Tive fimose, agora tenho artrose, lordose a acho até que posso morrer de overdose, não de drogas, mas das doenças que invadiram esse velho corpo no decorrer de sua longa e desregrada existência. O que me resta? Paciência!
Sou só mais um produto, bruto, do meio que me rodeia, sou a aranha velha, que ficou presa na teia, que caiu na armadilha de sentir-se imortal. Fiz da vida um Carnaval, agora só me restam as Cinzas da Quarta-feira!
Cleusa Piovesan
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(Crônica publicada no livro Descaminhos (2019), pela Editora Darda)