JURADO DE ENFORCAMENTO



Duas vezes,ou mais,por mês, acontecia um encontro na casa de vó Maria.
Estávamos vivendo o "glamour" dos anos cinquenta na pacata Irati Velho.
No auge de meus cinco anos,era eu, então, investido na
função de mensageiro .Um autêntico garoto de recados.
Assim cavalgando um alazão imaginário, ia me embrenhando campina e floresta a dentro para levar as boas novas:
O convite (que era quase uma intimação) para o encontro das amigas.
Devidamente avisadas,iam-se chegando aos poucos: Nhá Percilia, Nhá Tuca e Tia Lucinda.
A essa altura, vó Maria já havia jogado sua surrada toalha de crochê sobre a mesinha redonda, arrumado os pratos esmaltados e as cadeiras de palha,sempre em número de cinco (Vai que apareça mais uma ! Como costumava dizer).
Percília trazia a bilha de leite e a farinha de milho.Leite de suas bem cuidadas vaquinhas e farinha de milho que ela mesma produzia em seu monjolo movido a água.
Vó Maria, com uma certa mania de grandeza,espalhava uma variedade de doces que ela fazia com os frutos de seu pomar.Eram caixetas com marmeladas,doces de pera em barra,doce de figo,etc...
Nhá Tuca,vez e outra trazia pessegada,sua especialidade.
Tia Lucinda,a mais nova da turma,revestia-se de sua animação.Era a que pouco ouvia e a que mais falava.
Trazia tão somente o seu carisma pra ajudar no banquete.
Assim,em torno da mesa, somadas as idades,eram mais de 250 anos de vivências,sabedorias e...Algumas ranzinziçes,é claro!
Verdadeiros navios de marmelada e outros sabores,ancoravam naqueles mares de leite e flocos,enquanto as amigas teciam tôda sorte de comentários sobre o escandaloso cenário da época.
Quem noivou, quem casou, quem tá de barriga, quem não anda muito bem de saúde,quem assanhou-se com o padre e até quem cometeu o pecado da gula, quem anda roubando no peso, a caristia ou custo de vida.
No terreiro, brincávamos os primos ,eu e alguns amigos da vizinhança.
Num certo dia,o encontro ocorria solene e tagarelante na varanda dos fundos e uma bola de pano,igualmente desfrutava solenemente dos ponta pés da piazada.
Eis que senão quando ! A dita (a bola)fez um pouso forçado sobre os "pratinhos de ágata".
Foi um reboliço de leite,flocos e doces até pelos cabelos das participantes ! As amigas, então, perderam suas supostas elegâncias.
Vó Maria jurou-me de enforcamento assim que fossem as visitas.
Tia Lucinda e Nhá Percilia,pediam que tivéssemos "modos" rsrs...
Em meio a este blá blá blá,Nhá Tuca,apoiada em sua inseparável bengala,levantando-se de sua cadeira, ajeitou
a peruquinha e aproveitou
a chance para proferir mais um de seus discursos. Daquela vez, seu discurso mais brabo:
"Esses pestinhas de hoje, já trazem fogo no rabo".
Ao que vovó arrematou:
"Tudo capetaiada ! Isso é farta de chicote no cagante"
Do que lembro,tudo ficou apenas nos discursos (des)valorizando a região glútea da molecada.
À noite uma sopinha de frango caipira , servida por vó
Maria, substituiu a forca que me estava predestinada.
Nada além de uma sutil observação.
"Tome tua sopinha e [vê se garra modos] piá de bosta. Você e teus capanga lambuzaram a véiarada"
Agora, "chispa" pra  cama.
E foi se afastando lentamente,segurando-se pra não dar o  gostinho de cair na gargalhada.