Pequenas histórias 199

... Que o Vento o Carregue.

Ficou de cócoras e com um pano limpou a calçada. Estendeu o pano, sentou-se com as costas apoiadas a parede do edifício, o único residencial naquele quarteirão. Sentou-se, se ajeitou, colocou os panos de pratos bordados por ela, todos enrolados dentro de um cesta de vime. Cruzou as pernas, pegou Jorge das mãos de Ilda, procurou deixar o filho confortável entre suas pernas, e em seguida, colocou a frente da cesta de vime uma caixa pequena de papelão.

- Ilda não vá longe.

- To com fome, mãe.

- Eu sei filha. Também estou com fome. Toma coma essa bolacha, disse para a filha retirando da sacola um pacote.

Lena tinha a perspectiva de pelo menos vender uns três panos de prato. Daí poderia comprar um lanche para ela e para a filha, apesar de que a ordem de Genor é de levar toda a grana para ele. No entanto não podia deixar a filha com fome. Só esperava que não aparecesse nenhum guarda e arrastasse para a delegacia como fora da última vez.

- Olha Dona, se eu pegar de novo a senhora, serei obrigado a chamar a assistência social. Aí eles vão tirar as crianças e levar para o juizado de menores.

- Mas Doutor, preciso alimentar meus filhos.

- Sei, mas isso o que a senhora faz é abuso ao menor.

- Não tenho com quem deixar eles, doutor.

- E o seu marido?

- Marido, doutor, está dois anos sem emprego e parece que gostou de ficar sem trabalhar. Só sabe beber e bater na mulher.

- Bem, dessa vez passa, mas da próxima não tem perdão. É a lei e estou cumprindo a lei.

É a lei, é a lei disse rispidamente várias vezes. Ora a lei, quem é essa senhora que não me deixa trabalhar, sustentar meus filhos? Não queria nada para ela, não queria ver os filhos sofrerem.

Chegando à casa, se é que aquilo poderia ser chamada de casa, o marido já veio agredindo-a, arrancando a bolsa das suas mãos, tirando dela o pouco que conseguira. Novamente bêbado, pensou ela, acho que nem foi procurar emprego. Avançou em cima dele, deu um empurrão que caiu na cama desacordado. Olhou para aquele homem que um dia se dizia ser seu marido. Sentiu pena dele e de si mesmo. Arrumou as poucas coisas que tinha num saco, pegou Jorge no colo, deu a mão para Ilda, saindo do barraco.

- Mãe, chamou Ilda.

- O que foi filha.

- Aonde vamos?

- Para longe daqui

- E o pai?

-... Que o vento o carregue.

E erguendo o braço acima da cabeça, com a mão fechada, gritou:

- Você “nunca mais vai passar fome outra vez”, minha filha.

Pastorelli
Enviado por Pastorelli em 03/07/2020
Código do texto: T6994728
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