SANGRIA

Em meados do século XVII, o inglês William Franklin, contaminado pelas doutrinas calvinistas radicais, temendo não ser um "eleito", apesar de ter uma sementinha de Deus plantada no coração, começou a se desesperar. Pois começou a acreditar que Deus o havia abandonado. Que Ele o havia exluído arbitrariamente da lista de criaturas salvas. Estava destinado ao inferno eterno.

No desespero procurou um médico. Mas um médico do século XVII, quando ainda nem se sabia que existia circulação sanguínea. E o médico, no topo de seu saber escolástico-episcopal prescreveu-lhe uma receita infalivel: sangria! Faltou-lhe dizer que ele estava com virose, reumatismo, espinhela caída, cobrero, urucubaca ou vento encanado. Pronto: bastava-lhe uma sangria para expelir todo pecado e maldade que vinha desde Adão e Eva.

Usando o princípio hipocrático de que a doença era uma coisa que nos invadia, uma partícula ou corpúsculo como diria Foucault, ela podia ser extraida por meio de uma sangria. Isso valia para qualquer enfermidade, inclusive aquela ocasionada por picada de vampiro ou por um olhar seca-pimenteira. Era uma época em que os médicos se restringiam a diagnosticar e prescrever. Não lhes cabia a parte terapêutica. Quem administraria tratamento, no caso, seria um profissinal próprio para essas imundícies: um barbeiro! Que fazia barba, bigode, cabelo, análise psicanalítica e sangria.

Mas os médicos, pelo que já foi exposto, também eram barbeiros em medicina e teologia: não acertavam uma. Só se fosse por sorte. Mas a medicina muito se desenvolveu. Naquela época não existiam vírus ou outros "córpuscúlos" a se intrometer em nossa fisiologia animal. Existiam "miasmas", "pruridos", sendo que sangrias curavam qualquer ziquizira. Apesar disso não duvido que hoje algum charlatão ainda difunda esse tipo de cura miraculosa. Aliás, talvez isso esteja ocorrendo sob algum outro nome, algum outro nome quase impronunciável.