DIOGO

A sensação que tive ao ver Diogo deitado com a barriga encostada no tronco de uma mussaenda, o corpo curvado para dentro como se tentasse enrolar-se ao arbusto, era a mesma que me atingia quando, em tempos escolares, recebia o boletim ao fim do trimestre e o professor dizia, Traga isso assinado pelos seus pais até amanhã, sem falta. Medo, angústia, e ao mesmo tempo um sentimento estranho de paz, de quem sabe que já não há mais o que fazer e se entrega por inteiro ao minuto presente, sentindo, de uma forma sublime, inédita, o oxigênio chegar purificado aos pulmões, os raios solares serem absorvidos pela pele produzindo energia vital, o canto dos passarinhos em pleno centro da Cidade Grande provando ao maior dos incrédulos que o lado bom da força resiste, apesar de tudo.

Caminhei sem pressa até Diogo e esbocei alguma frase sem sentido, introdutória, que me pareceu absurda por ter, logo de cara, assumido um tom formal, protocolar, algo descabido entre nós, amigos longevos, irmãos por acordo tácito. Uma mosca enorme caminhava no lábio inferior de Diogo, parando de vez em quando para esfregar as perninhas traseiras. De repente, ela adentra a fenda escura entrecortada pelos fios longos do bigode que Diogo negava-se a tirar, e pára na ponta da língua já escurecida, aguardando a chegada de outra mosca, e de mais outra e mais outra, todas elas entrando muito à vontade boca adentro, num vôo rápido, sem cerimônia, a convite da primeira, a mais corajosa, a quem fora incumbida a tarefa de fazer o reconhecimento de campo para enfim anunciar às companheiras, Podem vir, está tudo em ordem.

Não havia muito que fazer ali, não sabia nem queria rezar por Diogo, era para mim suficiente a certeza de que tínhamos sido bons um para o outro, de que sempre houvera entre nós uma compreensão mútua, construída, vale dizer, não sem muita dificuldade - pois era difícil compreender e aceitar que alguém gostasse e quisesse permanecer "ad eternum" na mendicância, rejeitando sinceros pedidos de ajuda, ofertas de emprego, uma refeição decente e diária no restaurante tradicional do bairro. Tudo isso eu oferecia a Diogo e ele recusava, ostentando um sorrido apodrecido mas ainda jovial, dizendo ao final, Deixa de ser limitado, irmão.

Chamei uma ambulância para tirá-lo dali, e o fiz da maneira mais discreta possível, para não atrair a atenção das pessoas que passavam na praça, apressadas, em direção ao matadouro. Decidi aguardar a ambulância, fazendo companhia ao velho amigo. Depois de ligar e informar ao paramédico o endereço em que estávamos eu e Diogo, ato contínuo liguei para o escritório para dizer que iria demorar um pouco, talvez uma hora ou um pouco mais que isso para chegar. A resposta monossilábica da atendente veio seca e distante, como se estivéssemos eu e ela em um imenso campo aberto, a duzentos metros um do outro, e eu lhe gritasse, sem vontade, Me espera, e ela respondesse, só por responder, Foda-se.

Eu e Diogo ficamos ali, juntos, por quase quarenta minutos, até a chegada do rabecão. Repara como o sol faz bem a essa hora do dia, amigo, consegui lhe dizer, antes de chegarem os três homens com um enorme estojo metálico para levar Diogo embora dali.

João Pegado
Enviado por João Pegado em 02/07/2020
Reeditado em 02/07/2020
Código do texto: T6993896
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