E por falar em estátuas...
Nunca esqueço o meu pai, mas tenho pensado muito nele, com mais constância, ultimamente. Foi um grande homem que o mundo não ouviu falar; um homem que bradou como (e com quem) pôde contra a ditadura, os homens maus e injustos...
Um dia, aos 8 anos, percebi que íamos viajar. De repente, estava eu, em uma boleia de caminhão, com minha mãe que passou toda a viagem abraçada a um relógio de parede, não só por afetividade, mas por honra, pois não nos pertencia. De todos os objetos, ele foi uma das poucas coisas que pudemos trazer. Tive de abdicar até dos meus brinquedos que fui obrigada a deixar com amiguinhas das quais senti uma saudade imensa. Dentre elas, a Marisa que, por coincidência, é o título de uma canção, do Fred Falcão, lançada em um grande festival de música, pouco tempo depois da nossa chegada por aqui.
Logo que nos estabelecemos, no Rio, vez ou outra via minha mãe dizendo, pelos cantos da casa, que meu pai não tinha jeito mesmo. Era por causa de um jornalzinho que alguém deixava na caixa de correio. Isso nos anos 70, quando Emílio Garrastazu Médici matava até por falhas técnicas, como justificou, no caso do Rubens Paiva, ao ser indagado sobre ele em um aeroporto. Mas não é que o jornalzinho contivesse nada de criminoso, ao contrário. No entanto, quem o lesse, poderia morrer mesmo. O poder paralelo e a injustiça são forças reativas muito ativas, não é de hoje, nesse país; e não perdoava comunista, coisa que meu pai nunca foi, mas é como a todos eles, os representantes do atraso, viam - os que não liam na cartilha deles.
Me lembro bem quando meu pai fechava os punhos e apresentava uma expressão facial transtornada quando falava do Castelo preto. Pelo jeito, algum programa de governo esse desgraçado sancionou que nos levou à falência no interior, nos expulsando do bucólico para o caos da capital que hoje amo. Mas como foi difícil! Vivi submetida a mil cadeados, em casa e fora. Foi preciso muito muque para abrir cada portão de ferro das Muralhas de Constantinopla que surgiam no meio do caminho. Parecia que o mundo era ainda um Império Romano, com César em plenos poderes, e nós nas galés.
Foi impressionante a caminhada paralela inversa do meu pai e do poder no labirinto brasileiro. Sem um Fio de Ariadne, quanto mais buscava a saída, mais apanhava do minotauro. Foi um herói pra mim, mas não passou de um aspirante a Teseu: impedido, abatido, humilhado, socado... Até que, um dia, chegou às cinco em ponto, como era de costume, para me ajudar a fechar um comércio que eu mantinha no centro do bairro em que morávamos. Do nada, se queixou de uma cãibra nos dedos de uma das mãos. Em poucos segundos, eu já estava abandonando tudo e correndo com ele para a clínica. De lá, depois de constatado o enfarto, seguimos para o Albert Schweitzer, hospital municipal que tinha o nome de Olivério Kraemer. Ainda pude abraçá-lo quente e nunca mais... Só vi quando ele passou na maca, sob um lençol hospitalar, que deixou ao vento uma mexa dos seus cabelos branquinhos. Evaporou honestamente para outra dimensão. Não virou estátua, nome de escola nem de rua, graças a Deus.
Sempre tive muita desconfiança de certas homenagens póstumas. Torço para que não nos sejam mais impostas. Geralmente, são representantes de uma supremacia que, depois de esmagar uma grande maioria, ainda permanecem ordinárias e altivas nos urubuservando nas praças, sempre acima de nós.
Vi no Google várias escolas que receberam o nome do Emilio Garrastazu Medice, presidente traumatizante que massacrou uma geração inteira, deixando sequelas. Muitos, que estudam lá, devem ter, como eu, um familiar torturado de alguma forma por esse general sanguinário. Deve ser tão duro para eles como seria para nós, um dia, ter netos estudando em um Centro Educacional Bolso não sei das quantas; e que ainda por cima, ao brincar na pracinha, fossem encarados por olhos de ferro ou de concreto de um Manivela cri-cri ou mesmo de um Vexame Viuxeu. Weintraub, então... Cruz credo!
Minha vingança é saber que meu pai está a mil anos luz de todos eles. Isso é que é poder!