FARINHA AMARGA
                                                     
A casa se encontrava às escuras. A cozinha, contudo, era de certa forma, parcamente iluminada. A precária iluminação provinha de um fogão à lenha, em cuja trempe uma chaleira – contendo água fervente – tremulava.

Em torno do fogão a família se encontrava reunida. Eu – o menor dos irmãos – estava assentado no colo da minha mãe. As minhas irmãs Carmem e Sebastiana assentavam-se em tamboretes, posicionados junto à Senhora Ana – Ana da Cruz Prates – uma imensurável mulher em tamanho e caráter singular. Todos estavam em silêncio. Um silêncio massacrante que era quebrado pelo estalidar da lenha ardente no fogão e pelo vapor da fervente água da chaleira. Mamãe tinha o olhar pensativo, fixado em uma estrela enorme que cintilava na imensidão da escura noite, tal qual fizera quando nascera o Salvador. O meu olhar fixava o da mamãe. Pelo clarão que emanava do fogão, pude ver que as meninas dos olhos dela nadavam ávidas por não morrerem afogadas no oceano de lágrimas formado nas cavidades oculares. Todavia, as quentes e brilhantes lágrimas foram mais fortes e arrebentaram frágeis barreiras de contenção: Mamãe chora. As suas abundantes e quentes lágrimas transbordavam pelas crateras dos negros olhos, como a lava incandescente do furioso Etna em erupção. E elas escorriam pelas doloridas e sofridas faces de Mamãe. Ela chorava – constatei, constatamos!

Era ela a matriarca de uma faminta família. E ela sentia as forças se exaurirem em cada célula dos músculos cansados pela labuta diária de lavar roupas às margens do Rio Todos os Santos que banhava a minha cidade. Ela era, com muito orgulho, uma Lavadeira Profissional. E era das imensas trouxas das roupas as quais lavava, que retirava os minguados tostões para a sobrevivência do nosso clã.

A chama crepitava. As lágrimas, como vadias bailarinas, rodopiavam em sádicos e céleres volteios pelo sofrido rosto de Mamãe. Nós, paupérrimos filhos, a tudo assistíamos sem, contudo, nada poder fazer. A mamãe chorava por não poder a nossa fome saciar. Nada havia para comer. Nada havia para cozinhar. A chaleira, fazendo o papel de uma idiota canastrona naquele palco de tragicômica miséria, parecia da nossa desgraça sorrir, com o seu enervante chiado de água fervente, em nada se importando com o sofrimento que fervia em nossos peitos, as nossas dores.

A negra fome bailava maquiavélica em nossas barriguinhas, fazendo em destroços o coração da mamãe, ferindo-lhe a alma.

Ao lado dos ardentes tições está uma caneca que a Sebastiana irmã, trouxera da casa de Dona Sebastiana – uma vizinha amiga. Peguei-a! Pelo peso notei que havia algo dentro dela. Meus dedinhos tocaram o que nela continha e, pela densidade, parecia ser farinha. O meu estômago, incitado pela fome que por ele grassava, remexeu em minha barriga e rosnou como um leão ferido. Querendo saciá-lo, recoloquei a mão na caneca, retirando da mesma uma porção do seu conteúdo para, em seguida, levá-lo à boca com o fito de emudecer o famélico felino. Contudo, o amaríssimo sabor fez-se desenhar em meu já sofrido rosto uma máscara de asco e repúdio. O conteúdo da caneca não era farinha, como pensava ser. Era pó de café. Pó de café de amargo sabor. Café que não podia ser coado e servido, porque açúcar não havia. A mamãe, coitada, vendo o meu tresloucado gesto, apressou-se em levar-me ao quintal para lavar a minha boca... minimizar  o meu sofrimento e o dela. Não sei se fora o choque pelo amargo sabor ou qual outro motivo fizera o famélico felino calar-se. Todavia, ele se calou.

Levado pelas mãos da mamãe, retornamos à cozinha. Em lá chegando, ouvi mamãe dizendo às minhas irmãs:
            -Carmem, Sebastiana – vamos dormir meus filhos!

Guiados pelas fortes mãos daquela inquebrantável mulher, nos dirigimos, em meio à escuridão reinante, ao único quarto da casa. Assentamo-nos na cama, móvel único onde todos nós dormíamos, e rezamos o Pai Nosso, com tamanha fé e esperança, que fizeram os leões se calarem nas nossas frágeis jaulas estomacais.
            Pai nosso que estais nos céus (...)!
Terminada a oração, nos preparamos para dormir.
-Benção, Mãe!... Disseram em uníssono Carmem e Sebastiana!...
            -Benção, Mamãe!... Pedi-lhe eu!..
            -Que o bom Deus os abençoe amados filhos meus!... Respondeu-nos aquela que foi a maior de todas as mulheres: Ana da Cruz Prates, minha eterna e saudosa Mamãe.
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Altamiro Fernandes da Cruz
Altamiro Fernandes da Cruz
Enviado por Altamiro Fernandes da Cruz em 02/07/2020
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